#10 Moçambicanos – Mário Gomes, Maputo
Mário Gomes, 74 anos, empresário e adepto de uma boa dose de adrenalina, gosta de contar que nasceu em Moçambique por causa de uma história de amor. O seu bisavô paterno, ajudante de carpinteiro, foi trabalhar para um colégio feminino no Porto, para arranjar as secretárias, e aí se apaixonou por uma das alunas. A que viria a ser a sua bisavó correspondeu à paixão e os dois foram pedir autorização aos pais da rapariga para casar. Perante um não, decidiram fugir para Moçambique, para a cidade da Beira. Teriam na altura uns 16 e 19 anos ou uns 17 e 20, ela mais nova, pelas "contas mal feitas" de Mário Gomes. Na Beira tiveram dois filhos, um deles o avô, também Mário Gomes, de quem herdou o nome.
Talvez por nunca ter conhecido o avô ou sobretudo por ter ficado sem os pais aos dez anos, Mário Gomes não gosta que lhe perguntem de que família é, o que lhe aconteceu uma vez a bordo de um avião da TAP. Afinal, a pergunta era feita por alguém que tinha conhecido o seu avô, que era caçador e também taxista e dono de um táxi que fazia serviço no Hotel Polana. E que um dia foi convocado para integrar uma das equipas enviadas a Tete para caçar os leões que estavam a invadir a cidade, tendo acabado por matar alguns animais mas também por ali apanhar bilharziose, provavelmente por ter bebido água estagnada. Morreu aos 24 anos, deixando viúva a rapariga que um dia viu chegar, de barco, tinha ela 14 (casou com 15), à então Lourenço Marques. Juntos tiveram um filho, João Gomes, corredor, conhecido como "o homem dos Jaguares", vencedor de 39 taças e que havia de perder a vida com 30 anos numa corrida no Xai-Xai, capital da província de Gaza. Mário Gomes estava lá e ainda hoje sente que nesse dia ficou sem "guia".
No mesmo ano, dois meses e meio antes da morte do pai, Mário Gomes já tinha assistido à morte da mãe, vítima também de um acidente de carro, que seguia a uns 40 quilómetros à hora, num cruzamento da capital, onde uma viatura de paraquedistas não respeitou a prioridade. É nessa altura que a avó paterna, modista, duas vezes viúva e casada pela terceira vez com o "tio" Santos vai viver com Mário e a sua irmã dois anos mais velha, baptizada de Iracema em homenagem à avó materna, nascida no Brasil. Marito, que se lembra de ajudar a avó a picotar os modelos que vinham na revista Burda e de muitas vezes ter jantado pão com manteiga e banana ("Quando havia manteiga, pão com banana havia sempre"), passou assim de menino rico (aos 10, tinha bicicletas, uma mota e uma go car) a menino pobre, que usava camisas com os colarinhos virados oferecidas por um "meio tio", "meio irmão" do pai, que nasceu do segundo casamento da avó.
Nesses tempos, foram tendo a ajuda de familiares. Dois irmãos da avó, um carteiro e o outro administrador, que andava pelo mato, enviavam dinheiro. Um primo da mãe, que vivia na Beira, também ajudava. Ainda é vivo, com noventa e muitos e a viver em Portugal, recebe a cada vinda de Mário Gomes uma garrafa de whisky de "rótulo azul" ("E tudo o que ele quiser"). Mas também houve familiares que "saquearam" a casa. Levaram as mobílias, as loiças, os perfumes que o pai comprava na África do Sul, a sua pistola, a sua caneta de ouro e o anel que Mário Gomes usa agora. Quando a irmã quis casar, aos 18 anos, com "o melhor cunhado do mundo", por a ter feito feliz, mas também um comunista que era demais para a "camioneta" de Mário Gomes (como locutor da Rádio Renascença, seria ele a pôr no ar o Grândola Vila Morena, como senha para o 25 de Abril), conseguiram recuperar todos os bens levados.
Quando chegou aos 18, já com o Curso Comercial feito, Mário Gomes tinha duas hipóteses para sair de casa. Ou ia trabalhar por uns 1200 escudos, o que dava para um quarto mas não dava para o alojamento e para a comida, ou ia voluntário para a Força Aérea. Decidiu-se pela Força Aérea e assim partiu "feliz e contente" para Portugal, onde nunca tinha estado. E mais tarde regressou a Moçambique e foi para Nacala, altura em que conheceu e ganhou o gosto pela Ilha de Moçambique, onde comprou o seu primeiro carro, um Volkswagen que custou três contos e quinhentos. Nessa altura, era administrador da Ilha o seu tio Newton Ferreira, irmão da mãe, que gostava de dizer aos amigos de Portugal que lhe queriam escrever que bastava colocarem no envelope "Newton Ferreira. Moçambique". E as cartas chegavam-lhe sempre.
Estava na Força Aérea, onde acha que começou a ser bom na gestão de stocks (gerindo as peças dos aviões que precisavam se ser substituídas), quando teve o primeiro emprego, a passar legendas num cinema de Nacala. Recebia 50 escudos por sessão e ainda via o filme de borla. Também em Nacala, num dia em que saiu da base "fardadinho e penteadinho" (ainda era "cabeludo"), foi bater à porta de uma fábrica enorme de descasque de caju, para pedir emprego. Disse que estava na tropa (que era uma "seca"), que percebia de contabilidade, que era muito bom trabalhador e que queria ganhar 3500 escudos (na tropa ganhava 1200). Passou a trabalhar com o sr. Brandão, chefe da Contabilidade, das cinco e meia da tarde às oito e meia, e a comer muita "castanha", não sabe como não enjoou. Para se deslocar, comprou a primeira mota, com um empréstimo da empresa, que lhe adiantou três meses de salário.
Com 22 anos, Mário Gomes, que sabia querer voltar a ser rico, para não depender de ninguém e poder ser ele mesmo, regressa à capital. Estava ainda na Força Aérea, mas trabalhava também numa empresa portuguesa que fabricava lâminas de barbear, sabão, pasta de dentes e "jam" (compotas) , mais uma vez no controle de stocks. Esse trabalho era feito por três senhoras, numas fichas guardadas em várias gavetas. Ele passou a fazer todo o trabalho, apenas numa manhã. Mais tarde, trabalhou na Matola numa empresa que tinha fábricas de óleo e de sabão. Ali chegavam homens de todo o país, carregados de feijões e de outros produtos, para se abastecerem. Uma vez, Mário Gomes comprou-lhes cinco toneladas de piri piri. E nessa altura tiveram de fechar as instalações, ninguém conseguia respirar. Doutra vez, um dos compradores contou-lhe que tinha conhecido um Mário Gomes em Tete, que andava sempre a fazer peões com o carro. É uma das últimas histórias que sabe do seu avô.
Mário Gomes trabalhou ainda na empresa TransÁfrica e na empresa estatal Interfranca, onde começou como director financeiro e passou a director comercial. Até que Moçambique se tornou no país mais pobre do Mundo e Mário Gomes decide ir para a África do Sul, mais por opção da ex-mulher. Ele teria preferido Portugal. Ali montou uma empresa de exportação, para vender para Moçambique, onde os portugueses eram muito menos do que antes da independência ("A malta foi embora", terão ficado uns 15 mil). Até que um dia, ainda a viver em Joanesburgo e depois de ter tido negócios também na Namíbia, compra um supermercado em Maputo, na Coop, o Luz. E depois disso uma sorveteria ali ao lado, a Splash, que foi um sucesso ("As máquinas de fazer gelados já não aguentavam"). Quando percebeu que facturava durante o dia no supermercado, ao final da tarde e início da noite na sorveteria mas que depois disso não entrava dinheiro abriu ainda a discoteca Clube Sete, com música dos anos 60. Em 1996, abriu quatro restaurantes Xima, para quem não podia pagar muito (vendia refeições por 14 meticais, cerca de 18 cêntimos ao câmbio actual, e ganhava dinheiro) e o restaurante Navegante no Aeroporto.
Enquanto ia controlando as contas, Mário Gomes percebeu que num determinado mês as vendas de frutas e legumes no seu supermercado Luz tinham subido 30 ou 40 por cento. E andou doido para descobrir a razão. Até que alguém lhe disse que o supermercado sul africano Woolworths, que tinha estado aberto na Praça de Touros uns seis meses, tinha fechado a parte de alimentos. Pensou que não podia perder essa oportunidade e candidatou-se para ser franchisado. Foi a um "interrogatório" em Cape Town (perguntaram-lhe quem era, como tratava os trabalhadores, como era a sua vida) e foi aceite. Passou a ter três lojas e em três anos ganhou três taças: no primeiro ano o prémio Rockie of the Year, para o melhor "novato", no segundo o prémio Fast Groing Company, para a empresa que mais cresceu dentro do grupo (entre mais de 400 lojas), no terceiro foi nomeado embaixador da marca. Considera que estas foram taças ganhas "com a cabeça", a juntar às 35 que ganhou "com o pé direito" a acelerar nas corridas e às 39 do pai. A maior parte deste espólio está agora no ATCM - Automóvel & Touring Clube de Moçambique, onde foi recentemente entregue.
A sua ligação com o Woolworths, que considera ter sido excelente, terminou quando a empresa quis acabar com todos os franchisados, tendo recebido nessa altura o lucro estimado para os três anos que faltavam para acabar o contrato. Foi com esse dinheiro, depois de olhar para o mapa e pensar que Maputo só podia crescer para o lado da Marginal, que avançou para a construção do supermercado Super Marés, onde hoje se encontra um Shoprite. Na altura, em 2004, nem havia "chapa" para a Costa do Sol e Mário Gomes teve de comprar um "machibombo" para transportar os trabalhadores. Mais tarde, foi no mesmo local que concretizou o sonho de ser dono de um centro comercial, que viria a ser o Marés. Hoje considera que deu um salto maior do que as pernas, sobretudo por causa da estagnação da economia provocada pelo caso das dívidas ocultas e por os juros terem passado para uma taxa de 25 por cento. Mas não se arrepende de nada do que fez, nem sequer do primeiro negócio, falhado, quando aos sete anos trocou cinco berlindes abafadores por um porta moedas de prata que o fascinava (e que à noite teve de devolver depois da intervenção dos pais do colega). Talvez emendasse uma coisa ou outra, sobretudo em relação ao coração.
Quando era novo tinha sempre duas ou três namoradas ao mesmo tempo, acha que por ter medo de sofrer mais perdas. Mais tarde, acabou casado por 22 anos, mesmo quando a relação com a ex-mulher já não estava bem, para as duas filhas não serem criadas sem os pais juntos. Até que decidiu sair fora, quando a mais nova tinha 17 e a mais velha 20 ou 21. Entretanto conheceu Ângela, quando abriu a Splash e a contratou para ali trabalhar. Dessa altura lembra-se de ter de ajudar na "tradução" quando ela reunia com os trabalhadores falando o seu português de Portugal. Mário Gomes vê na companheira, filha de uma prima da mãe e com quem vive há 30 anos, uma coisa única: a mesma "escola", a mesma "linhagem" que viu na sua mãe. Considera que são pessoas especiais, de coração bom, sem maldade.
Em 2012, durante a construção do Centro Comercial Marés, fumando uns 15 a 20 cigarros por dia, dos mais fracos (e dizendo aos amigos que a morrer havia de ser atropelado), foi diagnosticado com um cancro no pulmão, muito complicado. Depois de ter percebido que as probabilidades de sobreviver eram poucas e de ouvir o cirurgião sul africano recomendar que preparasse o seu testamento, decidiu ir a um psicólogo, onde "voltou tudo", sobretudo o porquê de ter perdido os pais aos dez anos. E decidiu também pesquisar no Google por "melhor cirurgião de cancro do pulmão". Acabou a ser tratado nos Estados Unidos, em Huston, no Texas, e a sobreviver. Mais tarde, numa consulta de rotina na África do Sul, foi-lhe diagnosticado um segundo cancro, este na cauda do pâncreas, numa fase muito inicial, pelo que considera que hoje estaria morto se não tivesse tido o cancro no pulmão. Entretanto, tem saudades de fumar. Talvez volte a fazê-lo lá para os 90.
Enquanto não chega lá, Mário Gomes, que se estreou nas corridas em Nampula, na prova Três Horas de Motocross, pouco depois de ter comprado a primeira mota, continua a querer ter "uma vida vivida". Em Junho de 2020 acelerou na praia de Bartolomeu Dias, no caminho de Inhassoro para a Beira, até aos 290 quilómetros à hora, conduzindo um Mercedes com 610 cavalos e na companhia de um amigo que queria chegar aos 300 (em troca de uma taxa de 1000 meticais, pode-se andar por ali de carro durante um mês). Recentemente, para comemorar a passagem da gestão do centro comercial que sonhou ter, foi ter com o amigo George a Durban, o único que resta de um grupo de sete ou oito amigos do peito, daqueles que todos os fins de semana iam ao cinema juntos. E com ele foi até Cape Town, sempre a acelerar, ao som de música dos anos 60, volume no máximo. Entretanto, Mário Gomes tem o sonho de passar o Inverno europeu na Ilha de Moçambique, onde construiu o Feitoria Boutique Hotel a partir da ruína de uma antiga feitoria de 1780, e o Verão europeu em Portugal, onde tem as duas filhas e também os quatro netos. Isto, depois de arrumar e vender a casa de Maputo (comprando ou arrendando depois uma mais pequena), por considerar que há três casas na vida: a primeira a que podemos ter, a segunda a casa dos sonhos, a terceira aquela de que realmente necessitamos.
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Maputo, Março de 2025 |
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Ilha de Moçambique, 1971 |
Gostei de ler a tua história. Abraços.Amilcar Martins.
ResponderEliminarQue aventura!
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