Maurícia: uma volta à ilha em duas semanas

Expectativas em alta – afinal, foi sobre a Maurícia que o norte-americano Mark Twain escreveu ter sido primeiro criada por Deus, que só depois criou o paraíso  e 15 dias para as confirmar. Foi assim que aterrei numa sexta feira quente no aeroporto de Plaisance, ponto de chegada e de partida desta volta completa por uma ilha que não tem mais do que 65 quilómetros de norte a sul e 48 de este a oeste. Mas que tem 330 quilómetros de costa, com praias de águas quentes, transparentes e calmas, porque protegidas por uma barreira de coral, cidades animadas por mercados, jardins botânicos, ilhas e ilhéus em volta, casas coloniais bem preservadas, plantações e fábricas de chá e de cana de açúcar, templos hindus, igrejas católicas e mesquitas, cascatas, velhas salinas em actividade (desde 1830), uma gastronomia variada e um povo que cumprimenta os visitantes com um bonjour ou um bonsoir ou mesmo com um aperto de mão   diz o guia Le Routard que é preciso acordar cedo para encontrar gente mais simpática do que os habitantes locais e é bem capaz de ter razão.
Aluguer de carro tratado (um Hyundai i10, na First Car Rental, por pouco mais de 30 euros por dia) e malas arrumadas no Le Jardin de Beau Vallon, seguimos antes do anoitecer para a praia de Blue Bay e para as primeiras fotografias (irresistíveis as mulheres de sari à beira mar ou os noivos em sessão fotográfica a bordo de um barco de velas coloridas). E também para a primeira chuvada rápida e forte, da qual me abriguei numa espécie de telheiro onde uma família montava uma tenda para aí passar a noite ou talvez o fim-de-semana.
De regresso à casa de hóspedes que nos havia de acolher por duas noites, estava tomada a decisão de experimentar o bem afamado restaurante que ali funciona (o restaurante fica numa casa colonial do século XVIII  e os quartos em quatro bungalows de madeira para duas ou três pessoas e num outro mais elaborado, que tem uma bela porta de madeira indonésia). E foi esta uma boa forma de começar a viagem gastronómica pela ilha dos caris, dos vindaye (prato originário da Índia, de peixe ou polvo, e que se prepara com mostarda, vinagre e especiarias), dos rougail (especialidade crioula proveniente da vizinha Reunião) e dos daubes (uma espécie de tomatada, geralmente com carne). No Le Jardin de Beau Vallon serve-se o prato típico dos casamentos dos maurícios de origem indiana, os sete caris. É este constituído por sete legumes e servido nas cerimónias sobre uma folha de bananeira e comido à mão, apenas com a direita. Ali, para além do clássico, serve-se também com frango ou peixe e apresenta-se o conjunto numa travessa com divisões para os vários ingredientes. Um prazer para os olhos e para o paladar. E com direito a talheres.








Passava das dez e pouco, no primeiro dia para explorar a ilha, quando fui surpreendida, à entrada de Mahébourg, a antiga capital e hoje uma cidade animada pela proximidade do aeroporto, pelo primeiro templo hindu. Perguntei se podia entrar e fotografar e disseram-me que sim, só precisava de me descalçar, mas que a cerimónia do dia já tinha terminado. E eu, que até então nunca tinha ido à Índia, comecei a achar que a Maurícia é uma espécie de pequena Índia no meio do Índico.
Conhecer um pouco a cidade situada ao fundo da baía de Grand Port  onde os holandeses, que chegaram depois dos portugueses e antes dos franceses e dos ingleses, desembarcaram em 1598  era um dos objectivos da jornada. Que se cumpriu com uma ida ao mercado de frutas e legumes (a feira semanal é à segunda-feira mas aí já estaríamos mais para norte), com uma visita ao Museu de História Nacional (que explica, entre outras coisas, como a contratação de trabalhadores indianos depois do fim da escravatura foi decisiva para o perfil actual da ilha) e uma caminhada pelo waterfront, onde há gente que pesca, que namora, que reza. O jantar do dia, ou um almoço muito tardio, pelas 18h30, seria também em  Mahébourg, no La Vielle Rouge, restaurante de peixe e marisco. Ficou aprovado o primeiro vindaye, de polvo, da temporada.










Nos arredores de Mahébourg, em frente à pouco frequentada e bela praia de Pointe d' Esny, é possível embarcar num passeio de barco à Île aux Aigrettes, uma reserva natural  a poucas centenas de metros da costa e gerida pela Mauritian Wildlife Foundation. Viagem e visita guiada (feita um pouco a correr mas a única forma de visitar o espaço protegido) têm a duração de 1h30 e um custo de 800 rupias (cerca de 20 euros). Em troca, podem ver-se algumas tartarugas, a mais velha com 90 anos, alguns lagartos e  morcegos e perceber os esforços que têm sido feitos para proteger as ameaçadas flora e fauna locais.








Ao terceiro dia era altura de começar a subida rumo ao norte, costa este acima, para uns dias de puro descanso em Belle Mare  mais uma praia rodeada de verde e com dezenas de quilómetros de areal. Mas antes do dolce fare niente, partimos à descoberta de La Vallée de Ferney, uma zona de conservação florestal de 200 hectares. A Maurícia tem apenas dois por cento de floresta primária e esta zona está incluída nesses dois por cento, sendo que o resto são campos e campos cultivados de cana de açúcar.
Ferney pode ser visitado com ou sem guia (as visitas guiadas são às 10h e às 14h e as livres entre as 9h e as 15h) e com ou sem almoço incluído (servido num restaurante em madeira, no meio do verde e com vista para um campo com tartarugas). Nós decidimos partir sem guia e sem refeição e somos conduzidos até ao início do percurso pedestre por um motorista que conduz um autocarro engalanado por muitas flores de plástico. A partir daí, serão três quilómetros acompanhados de muito suor, muitos mosquitos, mais suor e  mais mosquitos. Mas também, a bem da verdade, de vistas que compensam o esforço.








Depois da manhã quase monocromática no verde Ferney, uma parte da tarde é passada entre as bancas coloridas da feira de Centre-de-Flac, que se realiza às quartas e domingos durante todo o dia e onde se vende de tudo. E antes de seguirmos viagem até Belle Mare, não resistimos ao cheiro das especiarias e compramos algumas, canela em pau, açafrão, cravinho, baunilha e noz moscada, para condimentar a bagagem.






Belle Mare é mesmo um belo pedaço do litoral, ocupado sobretudo por hotéis topo de gama, daqueles de onde é possível sair só no final da estadia. Nós optamos, entre dias dedicados a banhos de sol e mar, por fazer algumas incursões ao exterior à hora do jantar. E não nos saímos mal, tendo em conta a pouca oferta de restaurantes, sem contar com os dos hotéis. Ali perto, provámos o caril de polvo com leite de coco do Symon's (à beira da Route Royale, sem turistas à vista). Um pouco mais abaixo, em Trou d' Eau Douce, ponto de partida para visitar a famosa e parece que sempre cheia Île aux Cerfs (que terá de ficar para uma eventual próxima vez), experimentámos o La Casa la Paille, onde nos serviram um capitaine inteiro grelhado, coberto de molho de caril e acompanhado do sempre presente arroz branco. Um sítio muito simples, com um serviço simpático e sem álcool na carta,  mas que ficaria aprovado mesmo sem o bon appétit que nos desejou um ciclista  e são muitos os ciclistas nesta ilha  que passou na estrada principal, muito perto da nossa esplanada de duas mesas.






Percorrer o litoral é na Maurícia uma tentação, mas fazer alguns desvios até ao interior é obrigatório. Um deles para visitar o jardim botânico de Pamplemousses, no norte da ilha, localizado um pouco abaixo da turística Grand Baie e a uns 11 quilómetros de Port-Louis, a capital. Visitado por personalidades como Charles Baudelaire, Nelson Mandela, Indira Gandhi ou François Mitterrand, Pamplemousses tem cerca de 600 espécies, entre as quais 85 variedades de palmeiras  sendo as mais famosas as originárias de Cuba , um lago de lótus brancos, outro de nenúfares gigantes provenientes de Amazónia. Tem ainda tartarugas e veados e o "castelo" de Mon Plaisir, uma casa em madeira ao estilo colonial onde vale a pena entrar para ver uma exposição de fotografias que documenta a vida de Seewoosagur Ramgoolam, primeiro primeiro-ministro da Maurícia independente (entre 1968-1982). É também Pamplemousses que acolhe o monumento funerário onde foram depositadas as suas cinzas.
As visitas ao jardim podem fazer-se sem guia ou na companhia de um e durante uma hora por 50 rupias (mais ou menos um euro e meio por pessoa, que acresce ao preço do bilhete, de 200 rupias), sendo que depois da hora terminar se pode permanecer por ali o tempo que se quiser. À entrada, convencem-nos que é essa a melhor opção: "Sozinha, como vai encontrar as árvores da mostarda ou das quatro-especiarias?". Contrate-se pois um guia, que nos sai cheio de tosse e com um inglês e um francês muito difíceis de entender. Mas simpático e que nos vai dando paus de cânfora ou  folhas da árvore da canela. Saio de Pamplemousses com o bolso dos calções cheio de cheiros e rumo à L' Aventure du Sucre, mesmo ali ao lado.
















A antiga fábrica de açúcar de Beau Plan fechou em 1999 e foi reconvertida em museu, um espaço que conta as várias etapas da história da ilha (como as tentativas dos holandeses a povoarem com os primeiros colonos ou a instalação definitiva dos franceses com a criação da Isle de France) e a forma como a cultura da cana de açúcar moldou a paisagem, a economia e as gentes. Vale a pena dedicar-lhe algum tempo e se a visita coincidir com a hora do almoço repouse-se na varanda do restaurante Le Fangourin. À saída, possibilidade de provar e comprar alguns dos 15 tipos de açúcar existentes ou provar algumas variedades de rum - há com café, mel ou baunilha.






Ao final do sexto dia chegamos ao topo da ilha e escolhemos Pereybère para ficar. Entre a Grand Baie, mais agitada, e Cap Malheureux, muito tranquilo, Pereybère tem uma boa praia pública (na realidade todas as praias são públicas mas umas são mais públicas do que as "reservadas" aos hotéis tipo resort), com  homens a jogar às cartas debaixo das sombras e cheia de locais ao fim-de-semana. E tem alguns bons restaurantes (o tailandês Wangthai tem uma óptima relação qualidade-preço-decoração) e snacks para tomar o pequeno almoço ou uma refeição mais ligeira (como o Rick et Cath).
Pereybère já foi ponto de partida para as ilhas ao norte de Cap Malheureux  são cinco no total –, antes de um acidente com o barco Babacool. Agora, é preciso contratar transporte na Grand Baie, onde escolhemos os serviços do Centre Sport Nautique. E é no catamaran Coral Belle que rumamos à Île Plate e ao Ilot Gabriel, com passagem pela fotogénica Coin de Mire, com as suas altas falésias (e onde não se pode atracar). Fazem-nos companhia quatro argentinos que vieram à Maurícia para o casamento de uma amiga (também argentina e a trabalhar em Moçambique) e três tripulantes que se encarregam de nos conduzir a bom porto mas também da banda sonora da viagem (que no total durou sete horas), do almoço servido a bordo ou da escolha do melhor local para um banho de mar e snorkelling.












E já com os pés em terra, tempo ainda para um salto a Cap Malheureux, povoação de pescadores e local de desembarque dos ingleses a 6 de Novembro de 1810, que tomaram então o controlo da ilha, até essa altura na posse dos franceses. O calmo Cap Malheureux é também sítio de naufrágios antigos e actualmente de missas concorridas ao fim-de-semana na igreja Notre-Dame-Auxiliatrice e de frequentes sessões fotográficas de recém casados. Mas a igreja de telhado vermelho exibe um sinal que proíbe "de forma determinante" que se finja um casamento pela igreja só para o retrato. Talvez por isso os noivos se façam fotografar à beira mar.














Fazia calor, muito calor, no dia da nossa passagem por Port-Louis, a capital. Talvez por isso tenha gostado mais ainda da rua coberta de coloridos chapéus de chuva, que na Maurícia são sobretudo um adereço feminino para protecção do sol. Apetecia ficar por ali a aproveitar a sombra e a beber uma água de coco (ainda não era hora para uma cerveja local) mas o mercado e o grande bazar (a parte mais animada da cidade), o bairro chinês, a Place d' Armes, os selos raros do Blue Penny Museum ou o Património Mundial de Aapravasi Ghat esperavam por nós.
No Blue Penny Museum um rapaz informa os visitantes que as luzes se vão acender dentro de cinco minutos. Não tivesse eu lido sobre os pequenos tesouros que o museu acolhe e teria achado estranha esta informação. No Blue Penny estão expostos os dois selos mais célebres e caros do mundo, que pela sua fragilidade só se podem ver durante dez minutos em cada hora, sendo que ao lado estão em exposição permanente cópias dos originais. E os originais foram comprados por um conjunto de empresas locais por 2,2 milhões de dólares. Selos à parte, o museu tem ainda uma didáctica sala dedicada à exploração dos mares do sul pelos europeus, com mapas da época e uma cópia do mais antigo globo terrestre, e  um espaço dedicado à história de Paul e Virginie, personagens criadas em 1787 pelo escritor francês Bernardin de Saint-Pierre e presentes por toda a ilha – há hotéis Paul e Virginie, há um chá Paul e Virginie, há uma estátua de bronze em Curepipe...
Era a Port-Louis que chegavam, depois de 1834, os trabalhadores imigrantes (indianos, chineses, africanos) contratados pelos ingleses em condições muito precárias para trabalhar nas plantações e fábricas de cana de açúcar depois da abolição da escravatura pela Grã-Bretanha. E chegavam ao que é hoje o Aapravasi Ghat, classificado pela Unesco desde 2006 como Património da Humanidade. Não resta muito das construções originais (alguns vestígios do que eram as cozinhas, o hospital) mas pelo valor simbólico e histórico valerá a pena subir os 16 degraus que ainda permanecem no local. E dar alguma atenção ao novo centro de interpretação que apresenta a história do lugar.


















Visita feita à capital (e o tempo a faltar para o Musée de la Photographie, criado em 1966 pelo fotógrafo Tristan Bréville), prosseguiu a viagem costa oeste abaixo, até Flic en Flac, localidade que só pelo nome, de origem holandesa, apetece visitar. E por ali ficamos na magnífica praia, a ver pescar, a ver o pôr-do-sol. E também a explorar os restaurantes da zona, sendo que a melhor e mais surpreendente descoberta foi o imenso Domaine Anna. Pela qualidade e variedade da carta, pela decoração, pelos preços, pela  varanda à beira lago.








E ao décimo primeiro dia mais uma incursão ao interior para um pouco de shopping (a Maurícia tem uma importante indústria têxtil e Floreal e Curepipe são alguns dos locais onde se podem comprar t-shirts ou outras peças produzidas localmente) e para uma visita e almoço no Domaine des Albineaux. Nesta vasta propriedade encontra-se uma das últimas casas coloniais, construída em 1872 por arquitectos franceses. Vale bem a pena percorrer as várias divisões decoradas com os móveis antigos e o piano então usado pela sociedade filarmónica de Curepipe, os corredores com as paredes cheias de fotografias da época (há várias da Exposição Universal de Paris de 1900, uma de 1917 que mostra a família Guimbeau fazendo-se transportar num carro descapotável ou uma outra da inauguração do  primeiro cinema, o Pathe Palace, em 1935) e subir ao sótão onde se guardam tralhas várias, velhos electrodomésticos e uma máquina fotográfica que terá sido a primeira da ilha. A casa do Domaine des Albineaux foi também a primeira a ter electricidade, em 1889, um corredor (a circulação fazia-se normalmente pela varanda) e uma casa de banho para cada quarto.






Deixando para trás o Domaine des Albineaux, rumamos ao destino do dia, La Gaulette, mas com passagem por alguns pontos obrigatórios do interior sul, na companhia de uma chuvada intensa: Grand Bassin, local de peregrinação com templos hindus construídos à volta de um lago que ocupa uma antiga cratera de um vulcão, Plaine Champagne, zona de floresta tropical, cascatas e desfiladeiros e habitat de muitas espécies de aves, e Chamarel, com a sua estrada de muitas curvas a descer da montanha até ao mar. 
E por causa da chuva era preciso voltar, pelo menos a Grand Bassin, lugar da maior festa da ilha, o Le Maha Shivaratree, que decorre em Fevereiro ou Março e que recebe entre 350 a 500 mil pessoas. Tinha de fotografar sem chuva a estátua da deusa Shiva, de 42 metros, os deuses hindus à beira lago, os templos e sobretudo subir ao topo do Piton Grand Bassin, onde a vista panorâmica compensou o calor e o esforço.












Regressamos ao litoral e à zona de Morne Brabant, uma formação rochosa que se eleva até aos 245 metros de altura e que foi classificada pela UNESCO como Património Mundial pelo seu valor simbólico e histórico. Foi no topo do Morne, de acesso difícil, que se refugiaram nos últimos tempos da escravatura escravos negros em fuga. E foi de lá que se lançaram em pânico, em 1834, quando os soldados lhes pretendiam dar a notícia de que podiam ser livres. História à parte, Le Morne Brabant tem talvez a mais bela praia da ilha ou pelo menos a que tem a água mais transparente.
Podia a viagem ter ficado por aqui e já estaria a Maurícia mais que aprovada. Mas juntámos ainda uma visita à plantação e fábrica de chá de Bois Chéri (para ver a fábrica em laboração é preciso ir cedo, por volta das nove da manhã), uns banhos de mar em Bel Ombre, na costa sul, e dois jantares no Chez Meilee (o segundo já na qualidade de clientes habituais), na calma La Gaulette. Ali ficámos à conversa com a dona, sobre o calor e a humidade nos meses de Janeiro e Fevereiro, sobre o frio que fez em 2010, quando a temperatura chegou aos 13 graus durante a noite, sobre a crise do euro ou sobre o perfil dos visitantes da ilha. Não ficámos a saber se conhecia Linda de Suza ("Toda a gente da minha geração a conhece", garantiu-nos uma empregada num dos dias ao pequeno almoço) ou Cristiano Ronaldo ("He is the best!", há-de dizer-nos no aeroporto um rapaz que faz o controlo dos passaportes), mas tivemos a confirmação de que é muito raro ver turistas portugueses por ali. Ainda bem que teve oportunidade de nos conhecer a nós.

















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