Maputo: amanhecer no Bairro dos Pescadores

Há dias em que vale a pena acordar cedo. Como aquele em que fiz 50 anos e quis ver o nascer do sol no Coral Lodge, ao largo da Ilha de Moçambique. Ou aquele, em que na praia de Jambiani, em Zanzibar, passei a madrugada a observar o vai e vem das mulheres apanhadoras de algas: entravam no mar e enchiam sacos que transportavam à cabeça até à aldeia ali ao lado, regressavam e continuam a apanhar as algas que haviam de pôr a secar e mais tarde vender para a indústria de cosmética ou farmacêutica. Ou ainda a última segunda-feira, dia em que saltei da cama às cinco para ver e fotografar o amanhecer no Bairro dos Pescadores, em Maputo.
Ainda o sol não tinha nascido e já havia miúdos a caminho da escola, todos de uniforme azul claro e azul escuro, pescadores regressados do mar (aproveitei para comprar uma garoupa e uma corvina, que seriam transformadas, umas horas depois, na ilha de Inhaca, num bom caril pelas mãos do cozinheiro Pedro), pescadores a iniciar mais uma jornada, alguns a carregar os motores das embarcações ou bidons de combustível, mulheres que vendem peixe em alguidares de plástico à beira da estrada de acesso ao bairro. E na areia da praia alguns velhos dhows, meio esventrados, tintas a desaparecer. A eles podia ser dedicado o poema que o moçambicano Sérgio Veiga, pescador, mergulhador, caçador, escritor, pintor, contador de histórias e a minha companhia neste passeio matinal, dedicou ao pai.


O Descanso da Dhow

Foram muitas as vezes que rasguei as minhas velas ao vento.
Foram muitas as vezes que a fúria das ondas ouviu o ranger do meu costado.
Foram muitas as vezes, também, que só a nossa coragem e a nossa perseverância fez com que conseguíssemos chegar a terra firme.
Resistimos a tudo... menos ao tempo.
Na madeira que deu corpo ao meu casco, já correu seiva, já teve vida.
Mas agora estou jogado ao acaso, algures numa duna de areia branca,
jogado ao abandono, tombado, exposto ao sol, às chuvas e às cacimbas das madrugadas. 
Os farrapos que restaram da minha vela e os retalhos de redes rotas são ainda quem me agasalham o corpo cansado do frio das noites.
Foi das florestas de mangal que roubaram a madeira do meu corpo.
Talharam-me mãos sábias,
mas porque navego em harmonia com os ventos e as correntes,
sou filho dos deuses e do mar.
Com as minhas velas feitas de retalhos dos restos das capulanas de cada amor,
levei comigo os romances vividos pelo meu marinheiro, nas suas mãos entreguei o meu leme e a minha alma.
Por ele em cada madrugada ergui as minhas velas ao céu, sulquei ondas, fui arrojado e deixei o meu destino entregue à sorte.
Tanto risquei o manto azul das calmarias,
como heroicamente me misturei com a espuma branca das tempestades.
O meu mastro não passa de uma cruz caída já inexpressiva.
Nas tábuas do meu casco abriram-se fendas.
As tintas que me deram cor também já estão ressequidas, e começaram a descascar.
Se ainda vivo, é apenas nos sonhos do meu marinheiro, do meu dono, do meu amo,
que como eu, de pele queimada e encarquilhada pelos maltratos do mar e do sol, 
está sentado numa cadeira desengonçada na varanda da sua cabana de pau a pique a olhar o mar.
À sua volta, no chão, estão muitas crianças.
muitos meninos que ouvem atentos as inúmeras histórias que vivemos juntos e ele tem para lhes contar.
De onde estou, do topo da duna, ao romper de cada madrugada,
ainda consigo espreitar algumas velas multicolores a fugirem no horizonte.
Sei que um dia as areias soltas do vento irão sepultar-me o corpo e deixarei de ver o mar,
mas, como aquelas crianças, são também essas velas que em cada madrugada vejo partir em aventura para os mais diversos destinos,
E me fazem acreditar na minha imortalidade.
Sérgio Veiga




































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