Lesoto: quatro dias no reino dos homem-cobertor

"Lesoto?", seguido de uma expressão do género "Hum... Isso é o quê?", tem sido a reacção mais frequente daqueles a quem falo sobre a última grande viagem por África, feita estrada fora num 4x4. Ao longo de duas semans percorremos um pouco mais de cinco mil quilómetros, de Maputo a Durban, na costa leste sul africana, de Durban ao Lesoto e deste destino desconhecido (ou "subestimado", para o guia Lonely Planet) a Port Elizabeth e ao começo da Garden Route. No final, regresso a Moçambique a partir de Mossel Bay, passando por Joanesburgo, onde desta vez não me escapou o Museu do Apartheid.
O "Reino no Céu", mais ou menos do tamanho da Bélgica, sem acesso ao mar e um dos países mais pobres do mundo (a agricultura de subsistência e a criação de gado são as actividades principais), fica totalmente rodeado pela África do Sul – para onde exporta o seu principal recurso, água, e de onde recebe o dinheiro enviado pelos nacionais do Lesoto que trabalham nas minas e nas fábricas sul africanas. Mas o que mais caracteriza este ex-protectorado britânico e estado independente desde 1966, é ser o único país do mundo que tem todo o seu território acima do ponto mais baixo de 1388 metros e 80 por cento acima dos 1800. E é pelas montanhas, que atingem a altura máxima no monte Thabana-Ntlenayana, com 3482 metros, que se vai ao Lesoto.
Entrámos no país pela mítica fronteira de Sani Pass, o que foi um começo perfeito para esta viagem de quatro dias: pela aventura, pela paisagem e por termos chegado ao fim sem nos cruzarmos com carcaças de carros acidentados, referidas em alguns relatos na Internet. Foram precisas duas horas e um veículo com tracção às quatros rodas (legalmente obrigatório para quem percorre Sani Pass a partir da África do Sul) para fazer os 20 quilómetros de uma estrada íngreme, de cascalho e terra batida, que pode ser encerrada por causa da chuva, da neve ou do novo coronavírus que ameaça o mundo, como acontece agora. Nós viajámos num dia de sol e celebrámos o sucesso da missão com uma cerveja Maluti no bar mais alto de África. Ali perto, uma placa marcava 2873 metros de altitude e outra desejava um "Tsamaeo ka khotso [Go in peace]" aos viajantes.
Foi em paz, nem sequer perturbada por ser a última sexta-feira do mês (leio algures que é nessa altura que se pagam os salários e se fazem festas nas ruas, animadas por algum álcool), que percorremos 250 quilómetros até ao destino do dia, o Maliba Lodge, no Tsehlanyane National Park, um parque com grutas, trilhos para caminhadas, mais de duas dezenas de espécies de mamíferos, cascatas, rios e piscinas naturais. Ou não significasse "maliba" abundância de água.
Passamos pelas primeiras casas redondas, em pedra e com telhados de palha (chamadas mokhoro), pela mina de diamantes de Letseng (onde em 2018 foi encontrado o quinto maior diamante do mundo, vendido pela britânica Gem Diamonds por 40 milhões de dólares), por rebanhos de ovelhas a invadir a estrada, por pastores vestidos com cobertores, o traje nacional que também é usado por mulheres, embora de maneira diferente, por algumas crianças que nos gritam "sweets, sweets", por um miúdo que transporta uma bilha de gás num burro, por uma ou outra pessoa com o chapéu típico em forma de cone, símbolo do Lesoto, por homens a cavalo, alguns com gorros de lã tipo passa montanhas. E a temperatura a rondar os 25 graus.
Não havia, nesse dia, neve na Afriski, uma das poucas pistas para esquiar no continente africano e onde a temperatura pode chegar aos 18 graus negativos nos meses de Julho e Agosto. Vimo-la ao longe e seguimos viagem, tentando chegar a tempo às grutas de Liphofung, localizadas a uns 40 quilómetros de Butha Buthe e onde existe um conjunto de pinturas rupestres, com cenas de caça e da vida do povo San e mais tarde dos habitantes do Lesoto. Visitámo-las por um triz, com um guia que trabalhou para lá do horário de abertura.






































Viajar pelo Lesoto é assim uma espécie de safari não em busca de elefantes, leões ou outros big five mas de encontros constantes com várias espécies de animais domésticos. Ao segundo dia, cruzamo-nos pela manhã, à beira da estrada que nos havia de levar à barragem de Katse, a A25, com uma grande concentração de homens e vacas  – uma com um gorro vermelho, outras enfeitadas com uma espécie de decorações natalícias. E com mais homens a cavalo, ou em póneis que mais parecem cavalos. E mais ovelhas e mais burros, que transportam pessoas ou sacas de cereais. Alguns parecem seguir o seu caminho sem grande intervenção humana.
Katse Dam, a 130 quilómetros de Leribe (localidade também conhecida por Hlotse e onde havíamos de passar a segunda noite), foi inaugurada em Janeiro de 1998 pelo rei Letsie III e pelo então Presidente Mandela e faz parte do Lesotho Highlands Water Project, que visa fornecer água à vizinha África do Sul. É uma das principais atracções do país, assim como a Mafikia Lisiu Pass, uma paisagem rochosa que fica no caminho e é bem capaz de tornar qualquer viagem memorável. Visitar a barragem requer tempo, pois o percurso é feito de muitas curvas e se não se dormir no Katse Lodge, única opção disponível, é necessário regressar. Entretanto, reze o visitante para que uma falha de energia não impeça a visita guiada ao interior da estrutura, que foi o que nos aconteceu. Valeu-nos, no final, depois de alguma espera que não deu em nada, termos compensado a desilusão atravessando de carro toda a barragem de um lado ao outro. Daqui um obrigado para o guarda que nos abriu a cancela.












































O terceiro dia no Lesoto, um domingo ventoso, foi dedicado a Semokong, povoação que ganha o prémio de melhor sítio para almoçar ou jantar com um entrecosto servido no restaurante do Semonkong Lodge, o Duck and Donkey Tavern, à beira rio e de uma ponte por onde passa gente que apetece fotografar (e um homem a tapar a cara com o cobertor que levava vestido, enquanto outro se ponha a jeito e me incentivava com um "Do it!").
De Leribe até lá percorremos cerca de 205 quilómetros (são 114 a partir de Maseru, a capital), passando talvez pela maior parte dos carros do Lesoto, por um carrinho de mão que transportava um bebé e um bidon, por anúncios das manchetes do Lesotho Times, do Public Eyes, do The Nation, do Metro, colocados à beira da estrada, por muitas funerárias e cemitérios (a esperança média de vida anda nos 50 e poucos e a sida é causa frequente de morte), por um homem que tosquiava ovelhas, por cartazes onde se lia "No sexual activities here" (num descampado nos arredores de Maseru) ou "Condons avaiable here" (um pouco mais à frente), por um Vatican Car Wash e pela única universidade do país, em Roma, onde havíamos de regressar para passar a noite, e por casas que hasteavam bandeiras de várias cores. Nessa altura ainda não sabia que as brancas significam que ali se vende cerveja de sorgo ("joala"), as amarelas indicam que há cerveja de milho, as vermelhas que é local de venda de carne e as verdes de vegetais.
Nas proximidades de Semokong, a uns oito quilómetros a seguir à ponte, ficam as quedas de água de Maletsunyane, "descobertas" em 1881 pelo missionário francês Le Bihan. É este outro sítio imperdível do Lesoto e é lá que encontro dois miúdos que nos mostram o melhor caminho para ter a melhor vista e que fazem questão de ficar no retrato: um veste um cobertor em tons de azul e um gorro da mesma cor, o amigo veste um fato de macaco um pouco gasto e um gorro às riscas vermelhas e brancas e apresenta-nos os seus burros que pastam ali ao lado. Não lhes consegui perguntar, por falta de uma língua em comum, se andam na escola, mas devem andar. A educação é gratuita e obrigatória para miúdos dos seis aos 12 e o Lesoto tem uma das taxas de literacia mais altas de África.



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Não podia deixar o Lesoto sem experimentar a actividade mais popular que se faz por lá, o ponny trekking, o que para mim foi uma estreia absoluta. Fi-lo no Malealea Lodge, um velho posto comercial da época colonial que fica para lá da Gates of Paradise Pass (e mais uma paisagem a justificar a viagem). Trata-se de um alojamento com quartos nas típicas casinhas redondas em pedra, com cabanas na floresta ou lugares para acampar e onde é possível marcar um encontro com o adivinho da aldeia, que consultará os espíritos para responder às inquietações dos visitantes, ou partir em bicicleta à descoberta das montanhas. Um sítio que parece agradar a quem passa por lá: no livro de registos há viajantes da Austrália, França, Canadá, Itália ou Alemanha e opiniões de que se trata de um sítio "wonderful", "very nice" ou "amazing".
O Malealea Lodge trabalha em estreita relação com a comunidade de Malealea – para o Le Routard "Le coin plus réputé du Lesotho" – e são de gentes da aldeia os póneis e os cavalos usados para os passeios. Estes podem ser de duas horas até à Pitseng Gorge, de três até às pinturas rupestres nas proximidades, de quatro até às quedas de água de Botsoela, de sete se se juntarem os dois últimos destinos. Ou de apenas uma hora, pela aldeia e pelos campos à volta, que hão-de ser cultivados de sorgo, aveia, feijão e milho quando começar a época das chuvas, para os principiantes ou viajantes com tempo limitado.
De Malealea a Tóquio são 14046 quilómetros, a Nova Iorque 13335, ao Rio de Janeiro 7637, informa uma velha placa num cruzamento ali próximo. Nós só precisávamos de chegar nesse dia a Bethulie, na província de Free State, na África do Sul, a uns 236 quilómetros e a umas quatro horas de viagem. Mesmo assim foi uma odisseia, em busca de uma fronteira que estava no mapa mas que teimou em não aparecer, para deixar a antiga Basutolândia. 






























Pode-se viajar para o Lesoto em qualquer altura do ano mas os meses de Verão, que decorre de  Outubro a Março, início de Abril, são os mais indicados para quem não goste de frio. Os dias são quentes nas "lowlands" (em Maseru, a temperatura pode chegar aos 30 graus), embora nas montanhas o tempo possa mudar bruscamente. É também a época de maior precipitação. O Inverno, que coincide com a estação seca, vai de Abril a Setembro, com as temperaturas a chegar aos -18 nas zonas mais altas. Será a altura ideal para a prática de esqui. Mais informações sobre o tempo no Lesoto aqui.

Sani Pass – Tsehlanyane National Park, via A1 e com passagem por Moteng Pass (1º dia), Tsehlanyane National Park  – Leribe – Katse Dam – Leribe (2º dia), Leribe – Maseru – Roma – Semokong – Roma (3º dia) e Roma – Malealea – fronteira de Van Rooyens Gate, rumo à África do Sul (4º dia), foram as etapas desta viagem, realizada no final de Setembro de 2019.

Há empresas que oferecem excursões de um dia a Sani Pass (por exemplo a partir de Durban), para quem não tiver um 4x4 ou não queira aventurar-se por conta própria. A Sani Pass Tours, com sede em Underberg, no sul da cadeia de montanhas de Drakenberg, e a transportar visitantes desde 1955, é uma das opções.

O Maliba Lodge, localizado no Tshehlanyane National Park, é um investimento de dois australianos, Nick King e Chris McEvoy, que antes de apostarem no Lesoto já tinham negócios na África do Sul. Oferece três modalidade de alojamento: o 5 Star Chalets, único alojamento de cinco estrelas no Lesoto, com seis casas com lareira e terraço com vista para as montanhas, o 3 Star River Lodge, com quatro casas à beira rio que podem alojar até oito pessoas, e os Riverside Huts, para duas pessoas. Informações sobre actividades, preços e reservas no site.

Em Leribe (ou Hlotse) fica a Bird Haven Guesthouse, com seis quartos à volta de um jardim e uma casa principal construída em 1946 onde são servidas as refeições. Preços para dois a cerca de 68 dólares.

No sopé das montanhas Maluti, na localidade de Roma, a 33 quilómetros da capital Maseru, localiza-se o Roma Trading Post Lodge, gerido por gente do Lesoto e por holandeses que se apaixonaram pelo país. Está localizado no antigo posto comercial criado em 1903 por John Thorn, e que ali viveu até à sua morte, em 1957 (e hoje ainda vive por ali a quarta geração de Thorn's). Quartos para dois a partir de 48 dólares, mais 9 dólares o pequeno almoço.

O Malealea Lodge, em Malealea, que tem duas salas de jantar com muitos fotografias a contar a história do local, um bar cheio de bonés de todo o mundo pendurados no tecto, uma cozinha comunitária que data de 1930 e uma original estação metereológica (ver fotos), o Mountain Resort Lesotho, que serve a única pista de esqui do país e que está aberto todo o ano, e o Sani Lodge Backpackersque tem como atracção o bar mais alto de África, são outras opções de alojamento.

Caminhadas para visitar cascatas, pinturas rupestres ou andar em desfiladeiros, passeios a cavalo ou de bicicleta aos mesmos locais e visitas às aldeias são actividades disponíveis na maior parte dos alojamentos. Mas há outras propostas para melhor conhecer o povo do Lesoto, que vive de uma forma muito tradicional: partilhar uma refeição e uma conversa com gentes locais, conhecer a história de Ntate Faneuel Musi, que lutou contra a erosão do solo, um problema grave por todo o  país, nos campos que cultivava (propostas do Malealea Lodge) ou ficar a saber tudo sobre os likobo ou cobertores tradicionais, sobre os vários padrões e o significado dos mesmos (proposta do Semokong Lodge).


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