Rio de Onor: com um pé em Portugal e o outro em Espanha

"Afinal de contas, onde está a Fronteira? Como se chama este país, aqui? Ainda é Portugal? Já é Espanha? Ou é só Rio de Onor, e nada mais do que isso?"

José Saramago, Viagem a Portugal


Tal como o viajante Saramago, também eu tinha, depois da passagem por Bragança, uma "ideia fixa", ir a Rio de Onor, sendo que o escritor visitou a aldeia localizada no Parque Natural de Montesinho ainda antes de se fazer à cidade, não tendo neste caso respeitado "a hierarquia dos lugares". Mas se José Saramago não esperava "mundos e maravilhas" da visita ("Afinal, Rio de Onor não passa de uma pequena aldeia"), eu esperava ficar feliz por conhecer esta povoação tão singular, atravessada a meio pela fronteira com Espanha, com uma longa história de vida comunitária e que vai agora resistindo, com a ajuda do turismo, ao envelhecimento e à redução da sua população. Esperava cruzar-me com alguns dos seus habitantes e tinha esperança que alguns deles me dessem conversa.

Rio de Onor, localizada no extremo nordeste de Portugal, a 26 quilómetros de Bragança e a 535 de Lisboa, foi em 2017 a vencedora do programa 7 Maravilhas de Portugal na categoria de Aldeias em Áreas Protegidas. Já tinha turistas antes, sobretudo portugueses e espanhóis, mas com o prémio passou a ter mais ainda. "Não se compara", diz-me ao telefone Mário Gomes, presidente da União das Freguesias de Aveleda e Rio de Onor. A aldeia passou também a ter um tuk tuk para ser usado pelos visitantes, oferecido pela Câmara de Bragança e disponível sob marcação no Parque de Campismo, e uma espécie de marco que celebra o feito de estar entre as melhores aldeias, colocado lá em cima, ao pé da antiga escola – edifício recentemente recuperado numa parceria com Espanha e onde funcionará um centro interpretativo dos usos e costumes da região.

A aldeia já não precisa de escola, já não há crianças em Rio de Onor. Haverá talvez uns 48 ou 50 habitantes do lado português, o "povo de abaixo", a maioria com mais de 80 anos, e "entre 18 e 20" (ou "seis ou sete", depende das versões) do lado espanhol, o "povo de acima", onde a aldeia ganha o nome de Rihonor de Castilla. Entre os residentes há uma senhora que na manhã da nossa passagem amanhava, perto da fonte e do Bar da Associação, uns alhos "miúdos", que este ano uma praga não favoreceu a colheita. E há também o senhor Bernardino Preto, apelido comum a grande parte da população do lado português (que do lado espanhol se transforma em Prieto), antigo emigrante e dono da antiga taberna e mercearia, que fechou há quatro anos, e que agora vende no mesmo local máscaras de lata e de cortiça que se usam nas festas dos rapazes (realizam-se ainda em Janeiro nas aldeias de Aveleda e Varge, já não em Rio de Onor), navalhas para o presunto e para o que mais seja preciso cortar e outras peças de artesanato. 

Do lado do "povo de abaixo" há uma igreja matriz dedicada a São João Baptista, na qual a falta de padre se faz sentir (o "de acima" tem a Igreja de Santa Marina), uma ponte do século XIX sobre o rio Onor, um moinho comunitário reabilitado, um forno que é propriedade de uns herdeiros mas que pode ser usado por todos mediante um pagamento feito em pão. E há as casas típicas da arquitetura transmontana, feitas em pedra de xisto e telhados de lousa, de dois pisos, o de cima destinado a habitação, o de baixo, onde ficam os currais e as lojas, alguns ainda fechados com uma espécie de fechadura muito rudimentar feita em madeira, os carabelhos, destinado aos animais e ao arrumo do feno e de produtos agrícolas. Algumas das casas estão desabitadas ou em ruínas, mas mesmo assim têm as varandas de madeira enfeitadas com vasos floridos.

Desde finais de 2018 tem Rio de Onor um espaço museológico dedicado à cultura e às tradições locais, instalado na Casa do Touro, onde se podem ouvir histórias e memórias partilhadas pelos habitantes, ver a corrente que depois do 25 de Abril e até à abertura das fronteiras fazia a separação entre Portugal e Espanha, ver fotografias da aldeia em tempos mais antigos ou assistir às filmagens do etnólogo Michel Giacometti (parte disponível aqui). Só o uso de uns óculos que permitem visualizar como era o espaço na altura em que acolhia o touro não é agora possível por causa da Covid 19. 

E na Casa do Touro, que tivemos a sorte de encontrar aberta fora do horário habitual de funcionamento, fomos recebidos por Maria Luísa, Malu, natural de São Paulo mas filha de pais de Rio de Onor (e sobrinha de nove tios e de mais 11 de uma aldeia próxima). Está há três anos na aldeia, para onde costumava viajar nas férias, algumas vezes para acompanhar o trabalho agrícola da família. Feliz com a mudança de país e com a tranquilidade que encontrou, contou-nos que a Casa do Touro foi outrora um lagar e mais tarde o local onde se guardava o boi comunitário da aldeia, o boi cobridor que era propriedade de todos e por todos era cuidado.

Maria Luísa falou-nos dos hábitos comunitários de outros tempos, altura em que as vacas, as ovelhas e as cabras eram guardados num pasto comum por cada morador na sua vez, do dialecto próprio das duas aldeias, o rionorês, que está praticamente extinto, do Conselho do Povo, que reunia a toque de sino e onde participavam os chefes das várias famílias que escolhiam todos os anos dois mordomos encarregues de assegurar o cumprimento das regras em vigor, das dificuldades vividas com o fecho da fronteira em tempo de Covid (a população tem terrenos, colmeias e animais dos dois lados) ou das viúvas que se vestem de preto até ao fim dos seus dias. E mostrou-nos uma vara da justiça, ou tala, dos anos 20, onde eram registadas, com traços de vários formatos as multas aplicadas, pagas à comunidade geralmente em vinho e cuja quantidade variava em função do "delito": um quartilho para uma não comparência a uma reunião, uma canada, um cântaro ou dois para coisas mais graves, como insultar alguém, deixar os animais causar estragos nos campos cultivados ou roubar terreno a um vizinho. Os cortes mais fundos assinalavam as várias casas, por ordem na vara igual à ordem em que se localizam na aldeia.

Na despedida, a nova rionorense convidou-nos a voltar, aliciando-nos com as festas que volta e meia animam a aldeia, habitada por um povo "muito festeiro", apesar das idades avançadas. Em 2018 e 2019 realizou-se o Há Festa na Aldeia, com muitos visitantes, gaiteiros, bandas e bancas de artesanato (reportagem aqui); em Junho, no fim de semana mais próximo de dia 24, era altura, antes da pandemia, da Festa de São João Baptista (nos dois últimos anos só houve missa); em Julho, do Festival d'Onor, dedicado à música e às tradições locais; em Agosto, é costume haver sardinhadas comunitárias organizadas pelo Bar da Associação. Também pode haver festas mais ou menos improvisadas, com um rapaz dali perto que toca guitarra, "só mais para nos fazer rir", conta-me ainda Paula Preto, outra habitante, de 48 anos, que sempre morou em Rio de Onor. Tudo boas razões para regressar com mais tempo.











A Casa do Touro, gerida pela União das Freguesias de Aveleda e Rio de Onor, está aberta geralmente das 14h às 18h (no Verão até às 19h), de quarta a domingo. Depois do primeiro confinamento em Portugal, entre Maio e Setembro de 2020, recebeu a visita de mais de 500 pessoas. Mais informações: 934967251.

Casa do Rio, com dois quartos, sala e terraço e que oferece a possibilidade de fazer um piquenique, um workshop de fotografia ou participar na apanha de cogumelos ou castanhas, é um dos alojamentos disponíveis em Rio de Onor (mais informações no site ou através do 962809655). A Casa da Portela (que tem um estúdio e três quartos duplos), a Casa da Ponte (quatro quartos), a Casa de Onor (cinco quartos) e a Casinha Pequenina são outras opções de alojamento. A aldeia tem ainda o Parque de Campismo Rural, para caravanas (5 euros por dia, mais 3,5 por pessoa) e tendas (3,5 euros) e aberto geralmente de meados de Maio até final de Setembro ou Outubro. Ali podem os visitantes usar gratuitamente bicicletas eléctricas e realizar passeios de tuk tuk, na companhia de um guia (reservas e mais informações: 933337371 ou 938585693).

Com partida junto ao Parque de Campismo, está disponível o percurso pedestre PR11 O Lado Português de Rio de Onor, de sete quilómetros. Passa por um carvalho centenário, classificado em 2012 como árvore de interesse público (mais informações aqui).


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