#8 Moçambicanos - Filipe José Couto, Maputo

Filipe José Couto, mais conhecido por Padre Couto, tem 84 anos e é padre há 56. Tinha 19 anos já  feitos quando o decidiu ser. Antes disso, e dos 11 aos 14, aprendeu o ofício de sapateiro, depois de ter feito a 4ª classe. Trabalhou mais tarde para o português António Gonçalves, que casou por procuração e que era dono da sapataria Europeia em Nampula. Lembra-se que ganhava mil e quinhentos escudos, fazendo sapatos com gáspeas novas para pés "um pouco estranhos", alguns muito grandes, ou consertando solas ou os tacos de sapatos de senhora, algumas chegadas de Portugal e que as gastavam nas idas aos bailes. E lembra-se também de um dia ter dito ao patrão que queria voltar a estudar. Nessa altura, tinha já na cabeça uma pergunta que lhe tinha sido feita aos 15 anos, não sabe se a brincar ou não, por uma freira italiana que era enfermeira e também professora na Missão de Massangulo, agora distrito de Ngauna, no Niassa: "Filipe, por que é que não ficas padre?".

Apesar de inicialmente ter ficado atrapalhado e de não ter sabido responder, com o avançar da idade começou a sentir algum desassossego, a ficar isolado em casa, o que levou o pai, que era professor primário e catequista, a aconselhá-lo a falar com um padre. Foi ter então com o padre Mota à Missão de Massangulo, fundada pelo Instituto Missionário da Consolata, a quem disse que não tinha nenhum desejo de ser padre, que até rezava para não o ser. Mas que essa ideia lhe voltava com frequência. E é em 1957, altura em que ainda trabalhava com o sr. Gonçalves e que gastava parte do vencimento em livros, que comprava na livraria Reis (o resto era para ajudar os pais, que tiveram 14 filhos, sete meninas e sete rapazes), que decide estudar para ser padre. Mas nesse tempo acha que em Moçambique preferiam candidatos mais novos e negros e ele já tinha "uma certa idade" e era mulato, pelo que acaba em Portugal, no Seminário das Missões, em Fátima, a fazer o ensino secundário. Quando acabou o Liceu, já adulto, tendo feito até ao 7º ano em quatro anos, foi transferido para o Norte de Itália durante um ano, para aprender o que faz um Missionário da Consolata. Seguiram-se quatro anos em Roma, onde estudou Filosofia e se graduou, e Alemanha, onde estudou Teologia e se graduou também.

Em 1971 ou 1972, em plena Guerra Colonial, voltou para Moçambique, para Lichinga, no Niassa, mas meses depois fugiu, por causa de um "bispo muito pide", para o Malawi e depois para a Tanzânia, onde conheceu Samora Machel, Joaquim Chissano, Marcelino dos Santos, Mariano Matsinhe e outros. E por lá ficou até 1975, lavando pratos, descascando batatas, escrevendo algumas coisas sobre a Frelimo, viajando para a Alemanha em busca de ajuda humanitária. Quando regressa a Moçambique, depois da independência, torna-se pároco da Catedral, em Nampula, pela mão do Arcebispo D. Manuel Vieira Pinto, onde esteve até à morte de Samora Machel. "Samoriano" assumido, entrou em conflito com o regime que se seguiu, acabando por ser convidado a fazer um "ano sabático" fora do país. Acabou por dar aulas em Londres por quatro anos, no The Missionary Institute London. No regresso, esteve à frente da fundação da Universidade Católica de Moçambique, da qual foi reitor durante uma década. Mais tarde, torna-se Reitor e também professor de Matemática e de Filosofia da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, onde ainda hoje ensina, com a ajuda de dois assistentes, um refugiado do Congo que está consigo há oito anos e uma recém licenciada moçambicana.

Com poupanças que tinha, sobretudo do trabalho como Reitor, fundou em 2011 a empresa Winnua (uma palavra macua que significa crescer), em Mocuba, na província da Zambézia, para empregar estudantes de Agronomia que não tinham trabalho. E para produzir leite de soja, que é feito de madrugada para ser consumido no dia, farinha de milho ou papas reforçadas, que têm uma validade de pelo menos nove meses e devem ser misturadas com água quente, sendo altamente nutritivas e aprovadas pelo Programa Mundial de Alimentação. Actualmente, a Winnua ajuda na alimentação de cerca de 3000 crianças de Mocuba.

No ano de 2015, lá para Setembro ou Outubro, o Padre Couto, que ainda tem vivos oito irmãos (seis raparigas e dois rapazes), começou a não ver, por causa de um glaucoma mal tratado. Chegou a ir à Índia, a Nova Deli, onde a médica que o recebeu o aconselhou a aprender a ver sem olhos. O que acha ser possível. Ainda vai à Universidade, onde nos últimos tempos três cegos de nascença concluírem as suas licenciaturas. Prepara as aulas com audiobooks, reúne com os assistentes, acompanha o seu trabalho. De resto, gosta de fazer todos os dias um exame de consciência e gosta de sair, o que faz durante a semana com a ajuda do motorista Matusse, que foi educado na Alemanha, e ao fim de semana pedindo ajuda aos guardas do prédio da Avenida Julius Nyerere, onde mora sozinho. Gosta de ir à Taverna, ali perto, e dizer aos amigos que o querem ver para irem lá ter. E é assim que "vai indo para a frente".



Retrato feito a partir de uma conversa realizada em Maputo a 16 de Fevereiro de 2023. É o oitavo de uma série sobre moçambicanos a ser publicada aqui no blogue.

Mais informações sobre o programa de alimentação escolar Winnua, que funciona com a ajuda de alguns parceiros, aqui ou através do e-mail info@winnua.com.

Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares