Mia Couto apresenta em Portugal A Cegueira do Rio
"Tudo o que se relata neste livro tornou-se verdadeiro a partir do momento em que foi escrito."
A Cegueira do Rio, Mia Couto
Mia Couto acaba de receber mais um "visitante inesperado", como gosta de chamar aos livros que escreve ("É assim que eu os quero considerar", diz). E a pretexto do lançamento da mais recente obra, A Cegueira do Rio, o escritor, também biólogo e ex-jornalista e ex-professor, tem andado por Portugal – pelo festival Escritaria, em Penafiel, pela Biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, pela Casa das Letras, em Cabrela, no Alentejo, por Oeiras ou pela ilha Terceira, nos Açores. Em Oeiras, foi no Templo da Poesia, em mais um Café com Letras, que esteve uma noite destas à conversa com Jorge Reis-Sá, que o apresentou como "alguém que não precisa de apresentações", mas também como "um dos maiores, senão mesmo o maior, dos escritores moçambicanos". E aí vieram à conversa as mais de três dezenas de títulos publicados em Portugal, todos na mesma editora, a Caminho (e Mia a transmitir uma palavra de "gratidão" a Zeferino Coelho, presente no evento, que foi quem o fez "sair de Moçambique"), o Grande Prémio do Conto Branquinho da Fonseca da Associação Portuguesa de Escritores, que ganhou em 2023 com o livro Compêndio Para Desenterrar Nuvens (e fará isso de Mia um escritor também português?) ou a presença recente do escritor nas listas de candidatos ao Nobel.
Sobre A Cegueira do Rio, e não querendo estragar "o poder da surpresa" ("O livro não se conta"), Mia Couto falou de como é importante escutar "outras sabedorias", que não estão escritas, ou do papel do leitor, um co-autor do livro, que fará a invenção que lhe compete depois da leitura feita. E também de como surgiu a ideia para este romance, cuja história se passa na província do Niassa, para onde o escritor viajou. Mia estava na Internet, a navegar sem outra intenção que não fosse a de passar o tempo, e descobriu por lá um episódio real, pouco conhecido em Portugal e nada conhecido em Moçambique: um ataque de um grupo militar alemão numa aldeia do norte do país, em Agosto de 1914, acontecimento que todos os intervenientes pareciam querer esquecer.
A Cegueira do Rio, que tem na capa uma reprodução de O Navegante, uma pintura de Moisés Mafuiane, mais conhecido como Butcheca, é a primeira de um projecto que passa pela reedição de toda a obra de Mia Couto com capas de obras de artistas moçambicanos. "Quando saio de Moçambique gosto de sentir que venho acompanhado e então pensei que as capas deviam ser feitas por artistas moçambicanos", disse o escritor. Ao todo serão "trinta e qualquer coisa" e haverá livros com obras de João Timane, Titos Pelembe ou de Estevão Mucavele, "um velho senhor que quase não fala português". Mas que fala o suficiente para perguntar "Então e o dinheiro?", quando Mia lhe apresentou esta ideia. No final, pode ser que haja exposição das obras, pelo menos em Moçambique, uma sugestão do editor Zeferino.
Em Oeiras, Mia Couto falou também dos autores portugueses que o acompanham, admitindo conhecer pouco do que se faz de novo em Portugal, por estar preso ao que leu: de Pessoa, que o marcou na adolescência e que foi a primeira pessoa a mostrar-lhe que não tinha uma doença mental qualquer, porque dentro de si vivia "uma enorme diversidade de pessoas"; de Sophia de Mello Breyner, que foi "mestre"; ou de Eugénio de Andrade, por quem o pai tinha "um grande fascínio". A propósito do pai, Mia falou da Fundação Fernando Leite Couto, que criou em conjunto com os dois irmãos, um deles "rico", que pôs o dinheiro que era preciso "para a coisa arrancar". As dezenas de cartas que receberam quando o pai morreu, de jovens que mostravam uma grande gratidão pelo pai, levaram-nos a achar que esta era uma forma de continuar o seu trabalho, uma maneira de o manter vivo e sobretudo de retribuir o que receberam do pais. A Fundação, que tem uma galeria, um auditório e uma vasta programação cultural, entrega anualmente um prémio literário em Moçambique e em Óbidos.
E sobre a situação em Moçambique, onde a população se manifesta por estes dias contra os resultados eleitorais das eleições de 9 de Outubro, que deram a vitória ao candidato da Frelimo, o que disse Mia Couto? Cansado de ser mal citado, mal interpretado ou distorcido, como quando disse que "Se não houver um apelo à tranquilidade e a uma solução pacífica, todo o dirigente que vier a seguir herdará uma nação em ruínas" (e o que sobrou foi qualquer coisa como "Todo o dirigente que vier a seguir herdará uma nação em ruínas"), Mia Couto não deixou de dizer que está preocupado, que as coisas não estão bem. E que de imediato não vê uma "saída positiva".
P.S. – Mia Couto não esteve sozinho nesta viagem a Portugal. Em algumas das iniciativas esteve com o escritor angolano e amigo José Eduardo Agualusa, que acaba de lançar Mestre dos Batuques. Os dois já escreveram, a quatro mãos, sob um alpendre em Boane, Moçambique, o livro de novelas curtas O Terrorista Elegante e Outras Histórias.
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