#11 Moçambicanos – Aissa Mithá Issak, Casa do Professor, Maputo
Esta é a história de Aíssa Mittá Issak, 55 anos acabados de fazer, bibliotecária, profissão que a própria considera ser uma espécie rara, em vias de extinção. Mas também do seu cunhado Juliano Basto, diabético, que morreu com 60, em Março de 2020, e da sua irmã Stela Duarte, que morreu aos 57, em Outubro do mesmo ano, por sempre ter dito que se o marido morresse ela não viveria nem mais um ano. E ainda de um espaço a que chamaram Casa do Professor, uma biblioteca na cidade de Maputo que Aíssa considera ser "um caso de sucesso que parte de uma história triste".
Aíssa fez formação em linguística na Universidade Eduardo Mondlane e durante o curso foi monitora da professora de literatura Fátima Mendonça, que viu nela uma habilidade especial para organizar informação. E que no fim do curso a convida para trabalhar nos serviços de documentação da Universidade, onde teve como primeira tarefa criar uma base de dados de teses e dissertações feitas em África, gerida pela Associação de Universidades Africanas. Depois de ter feito um mestrado em Inglaterra, com a ajuda de uma bolsa, acaba por fazer toda a sua vida profissional em Moçambique, a trabalhar em universidades: começou na Mondlane, passou pelo ISCTEM e pela Politécnica e está hoje na Pedagógica. Entretanto, conheceu todo o país por causa das Ciências Documentais, a dar formação.
A sua irmã e o seu cunhado, os dois originários da cidade de Tete, sem filhos biológicos ("Os filhos eram os seus estudantes, os seus colegas"), eram professores na Universidade Pedagógica, ele com mestrado e doutoramento feito na África do Sul e formação em políticas educativas, ela com doutoramento feito no Brasil e formação em avaliação educacional. No apartamento em que hoje se encontra a Casa do Professor, e que era na altura a casa onde moravam, já cheia de livros, sobretudo técnicos, era comum receberem estudantes, investigadores. O escritor português José Luís Peixoto, que um dia visitou o espaço, já depois da morte de ambos, perguntou, ao ouvir a sua história, por que razão nunca tinham sido ministros da Educação.
Os dois fizeram parte da "geração 8 de Março" (de 1977), assim conhecida por ter sido o dia em que Samora Machel incitou os jovens a responderem ao chamamento feito pelo primeiro Governo pós independência: estudantes que frequentavam sobretudo a 9ª, 10ª ou 11ª classe deviam interromper os seus estudos para receber formação nas áreas que eram prioritárias para o país (educação, saúde, administração pública). Stela e Juliano conheceram-se no Centro 8 de Março, em Maputo, e receberam formação para serem professores. Acabaram os dois colocados em Nampula, onde casaram. Mais tarde, regressaram à capital e terminaram o curso no Instituto Superior Pedagógico, tendo ficado a trabalhar lá.
O cunhado de Aíssa foi diabético durante 16 anos, fazendo hemodiálise e sofrendo "mil e uma crises". Sabia que o fim era previsível e antecipou mesmo a "grande festa" dos 60 anos para os 59. Talvez por isso, dissesse sempre a Aíssa que um dia ela iria cuidar dos livros e dos discos do casal. Mas com uma condição: cuidar deles como eles o faziam, emprestando a toda a gente. Aíssa brincava e respondia que era melhor Juliano escrever isso em testamento. Depois da sua morte e da morte da irmã, que acabou cumprindo o que dizia, desistindo de viver, não se alimentando e tendo entrado em depressão (em Maio de 2020 enviou um texto à família dizendo que queria ser cremada e que as cinzas fossem lançadas no rio Zambeze), surgiu a questão do que fazer com o espólio que deixavam.
O mais normal teria sido vender a casa e doar os livros a uma instituição. Mas em conjunto com a família, Aíssa pensou numa forma de manter esta herança. Decidiram então aceitar o desafio de transformar um apartamento normal, com livros em todos os cantos, numa biblioteca. Da madeira dos armários e das camas que existiam na casa, e que tinham ido de Nampula, fizeram-se estantes, com a ajuda de amigos e de um dos guardas do prédio. E que nome dar ao espaço? O nome de Stela e Juliano? Foi um colega de Aíssa, professor de Educação Física, que sugeriu o nome Casa do Professor, que havia de abrir no dia 12 de Outubro de 2021, Dia do Professor e um ano depois da morte da irmã.
A Casa do Professor, onde se realizam apresentações e discussões sempre à volta dos livros, geralmente ao final da tarde, tem no empréstimo a sua principal actividade, sendo que os leitores chegam de todos os bairros de Maputo e também de zonas mais distantes. Aos livros que eram do casal, juntaram-se com o tempo os livros de Aíssa, os livros de alguns amigos, outros doados por instituições, muitos infanto-juvenis que faziam parte do projecto Mastec, gerido por uma ucraniana e que ali os deixou quando partiu de Moçambique. A Casa do Professor pensa ter hoje a maior colecção de livros para crianças e jovens da cidade. E Aíssa sente "orgulho" por estar "a pôr livros na mão de quem nunca teria acesso".
Esta biblioteca especial, que é "uma coisa de família, privada, mas que serve totalmente o público", abriu primeiro em Tete, experiência que não funcionou por não terem espaço próprio, e tem agora uma extensão na cidade da Matola, num local alugado, que recebe crianças para actividades de reforço da aprendizagem escolar. Em Maputo, onde há limitações de espaço físico e desafios financeiros para resolver, a Casa está rodeada de escolas (perto, há a Faculdade de Arquitectura da Eduardo Mondlane, o Instituto Comercial, a Escola Secundária Josina Machel; mais adiante, a Escola Internacional). Por isso, entre os leitores estão muitos estudantes universitários. Mas estão também os vendedores de fruta da rua ou os empregados dos restaurantes à volta (que precisam de ser "forçados", "desafiados"). Todos acabam por devolver os livros, mesmo que fiquem com eles muito tempo. E os "voluntários de leitura", que colaboram com o projecto, ajudam a fazer chegar a leitura aos bairros onde moram: levam umas dezenas de livros de cada vez e regressam dois meses depois para os trocar.
Aíssa, que acredita que a sua "sina de vida é criar legados", passou a ser em 2024 empresária na área do livro. Nessa altura, ficou proprietária de uma empresa, a Kapim, que faz edição, importação, principalmente de Portugal e do Brasil, e distribuição de algumas editoras. A Kapim pertencia até então a José Capão, que se encontrava em Portugal com um cancro terminal. Perante a hipótese de ver a empresa fechar, aceitou o desafio da filha do empresário e a 16 de Abril assinou o trespasse da empresa unipessoal, que espera que cresça. Tudo, porque a incomoda que se esqueçam as pessoas apenas porque morrem.
Retrato feito a partir de uma conversa que teve lugar na Casa do Professor, em Maputo, a 25 de Março de 2025. É o décimo primeiro de uma série sobre moçambicanos a ser publicada aqui no blogue.
Informações sobre a Casa do Professor, que conheci através da Chapateca (uma espécie de "voluntário de leitura"), na página do Facebook ou através do telefone +258 849000057. Fica localizada no número 133 da Avenida Mártires da Machava.
Uma delícia.
ResponderEliminarUma mulher inspiradora !
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