#12 Moçambicanos – Meque Gonçalo, Lhanguene, Maputo

Meque Gonçalo, 31 anos, com visão parcial, cresceu na cidade de Chimoio, província de Manica, numa família pobre. Quando nasceu, os médicos acharam que os seus olhos teriam algum problema, mas só aos cinco ou seis anos vai com a mãe ao hospital, onde os médicos confirmaram que algo não estava bem. Começou por ser operado ao olho esquerdo e dois anos mais tarde, quando as dores de cabeça pioraram, ao direito. Com 12 ou 13 anos, precisou de começar a usar óculos. E aí ficou bem, conseguia estudar, tendo chegado a concluir a 10ª classe. Depois disso, como homem e filho mais velho (tem duas irmãs mais novas), precisava de "sair para prover um bocadinho de sustento", de "fazer uma e outra coisa" para ajudar em casa. Para a família, a 10ª classe já era muito. E o pai, que quando era vivo fazia o que conseguia, tinha entretanto perdido a vida, por doença.

Com a sua perda, a mãe teve de se virar. Montou uma banca no quintal para vender alguns produtos, lavava roupa para fora e ainda cultivava ("Fazia machamba"). E Meque, com 16 ou 17 anos, encontrou trabalho na fábrica Deca, que produzia farinha a partir de produção própria e também do milho que comprava aos agricultores. Ali foi trabalhando, nem se lembra de quanto tempo ficou. Até que por volta de 2015 voltaram novos sintomas e a situação com a sua visão agravou-se. Foi aumentando a graduação das lentes até ao máximo, enquanto os médicos achavam que tal progressão não era normal. Em 2017 deixou de ver do olho esquerdo e deixou também de conseguir fazer o trabalho que desempenhava na fábrica. Pediu para sair e acabou por ficar em casa durante um ou dois anos, sem saber o que fazer. E entretanto sofria de descriminação por parte de alguns que julgava amigos. Foi-os perdendo.

É nessa altura que uma tia que morava na Beira lhe telefona, sugerindo que visitasse a ACAMO Associação de Cegos e Amblíopes de Moçambique, em busca de orientações. E Meque, que já só pensava em voltar à escola, para recuperar o tempo perdido, acabou por contactar a delegação da associação no Chimoio, onde o informaram que estava no sítio certo. No ano lectivo de 2020 começou a estudar braille, actividade a que dedicava "todo o santo tempo", por querer muito aprender. Até que lhe disseram que estava pronto para regressar às aulas, eventualmente seguir até à Universidade. Aceitando mais um conselho, desta vez de um tio, inscreveu-se para fazer o exame extraordinário da 12ª classe, sem passar pela 11ª. E para sua surpresa, depois de estudar matérias como Português ou História, foi apurado. 

A Faculdade era, para Meque, "um outro mundo", pois o dinheiro que a sua mãe ganhava só chegava para sobreviver. Mas a ACAMO incentivou a candidatura e pagou a inscrição para o exame de admissão. Acabou colocado na UP  Universidade Pedagógica, em Maputo, no curso escolhido, Antropologia, que só existia em Nampula, na Beira e na capital. E porquê Antropologia? Meque sempre se interessou pela diversidade cultural, por "saber o outro", por conhecer e perceber as crenças, os hábitos, os costumes, os comportamentos, as normas, os rituais. E considera que tudo isto está dentro da Antropologia: "A Antropologia está no nosso quotidiano".

Em casa estavam todos orgulhosos, mas o tema de como conseguir o dinheiro necessário era uma preocupação. Como viajar para Maputo, como pagar a primeira propina antes que uma eventual bolsa viesse ajudar? Um amigo de Chimoio, também deficiente visual, que é agora professor em Lichinga, onde estudou Língua Portuguesa na Pedagógica, sugeriu que Meque marcasse uma audiência com a Governadora da Província. E ele lá foi, pensando em como ia contar a sua história, em como ia abordar a questão, preparando as palavras para falar algo convincente. Acabou por sair de lá com um envelope contendo 6000 meticais (cerca de 80 euros ao câmbio actual), que deu para o bilhete de machibombo (custava na altura 1600 meticais), para a inscrição e propina para o primeiro semestre e para uma poupança de uns 1000 meticais. E ainda para a compra de um pacote de sumo em pó, que diluiu em água numa garrafa de dois litros, e de dois pães, com que se foi alimentando ao longo da viagem de cerca de 1200 quilómetros.

Em 2021, Meque chegou a Maputo, à Junta, pelas 22h30, sem saber onde ia ficar (hoje acha que foi "muito louco",  que arriscou muito). A primeira noite foi passada no estacionamento da empresa que o transportou, dormindo sentado, com as suas trouxas e a máquina de braille entre as pernas. As seguintes, depois de não ter tido lugar na residência da UP e com a ajuda da única pessoa que conhecia na capital, um senhor, também cego, que trabalhava na Acção Social, têm sido passadas no Centro de Apoio à Velhice de Lhanguene. Na altura, disseram-lhe que este não era um lugar muito aconchegante, que não tinha muitas condições, que seria o único jovem a residir ali (afinal estava lá Bruno, cuja história já foi contada aqui e aqui), mas Meque considerou um "luxo" ter onde ficar. E ainda hoje lá está.

No dia 15 de Outubro de 2022, um sábado, já com a questão da bolsa de estudo resolvida (deu certo à segunda carta enviada para o Instituto de Bolsas) e a frequentar o segundo semestre do segundo ano, Meque é atropelado na Rua José Macamo, perto de casa, por alguém que não tinha seguro mas que mesmo assim não fugiu do local do acidente. Ficou cinco dias em coma, dois meses e meio no hospital e no final com danos irrecuperáveis nos pés e no braço esquerdo e com a visão ainda mais comprometida. Quem viu, achou que o acidente, "gravíssimo", tinha sido fatal. E a mãe, que entretanto tinha chegado do Chimoio com a ajuda do responsável pelo desastre, só chorava, achando que o filho não iria sobreviver. Ficou por Maputo todo o tempo da recuperação, cuidando, alimentando, ajudando a dar banho, muitas vezes dormindo no chão do hospital.

Meque, que foi operado uma segunda vez ao braço no Hospital do Chimoio, regressou às aulas em Junho do ano seguinte, enquanto fazia fisioterapia no Hospital José Macamo e andando com o apoio de uma muleta. Até que percebeu que a podia deixar, se usasse um sapato compensado. Comprou os primeiros com a ajuda de primos e amigos, incluindo Bruno, que nessa altura já era "um irmão". Entretanto, o braço ficou com limitações mas funcional, consegue lavar "uma roupinha" ou escrever na máquina de braille. O que não faz muito, pois não a usa na Faculdade para não perturbar os colegas, com o barulho. Para estudar, grava as aulas com o telefone, que volta a ouvir em casa. Para ser avaliado, e como na UP não há professores capacitados para ler um texto em braille, Meque realiza provas orais com os professores de algumas disciplinas ("Foi um bocadinho puxado no primeiro ano") ou provas escritas, ditando as respostas a colegas que não sejam do curso de Antropologia. 

A frequentar actualmente o 4º ano da licenciatura, Meque tem como foco terminar o curso e defender a tese no próximo ano. Para a monografia, pensa escolher como tema a experiência de estudantes com deficiência visual nas universidades públicas, esperando conseguir recolher dados em pelo menos três instituições, incluindo a Pedagógica. Será a sua contribuição para melhorar um sistema onde considera não haver inclusão para as pessoas com deficiência. Entretanto, realiza por estes dias um estágio profissional na instituição de utilidade pública FDC  Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade e reza à noite por si e pela mãe. Acha que no futuro tem de a ajudar ("Tem de comer um bocadinho do que é meu"). E acha também que o pior já passou.



Retrato feito a partir de uma conversa que teve lugar na Universidade Pedagógica, no bairro de Lhanguene, em Maputo, a 27 de Março de 2025. É o décimo segundo de uma série sobre moçambicanos a ser publicada aqui no blogue.



Retratos da segunda temporada da série Moçambicanos:




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