Moçambique: apaixonada pela Gorongosa

"Isto é super wild", diz, mais a sério do que a brincar, um dos companheiros de viagem. Acho que com "isto" se referia não só ao caminho por onde seguíamos (um trilho engolido pelo mato, que nem era bem um trilho) mas também ao programa de três dias que nos levou ao Parque Nacional da Gorongosa. Mas comecemos pelo início. Era antiga a vontade de visitar a Gorongosa, que em mwani significa "local perigoso", e testemunhar ao vivo o projecto de reabilitação de que está a ser alvo. E a viagem - que chegou a estar marcada para o último fim-de-semana de Março mas que a chuva não deixou concretizar - acabou por acontecer recentemente.
Depois de um voo de três horas com partida de Maputo e escala em Vilankulo, sempre a baixa altitude (e que já valeria a pena, mesmo sem Gorongosa), aterrámos na pista relvada do campo de Chitengo,  no coração do parque, onde fomos recebidos com entusiasmo por alguns dos membros da equipa (os visitantes e os turistas são um bem precioso para o sucesso do projecto) e pelos primeiros animais (os macacos e os facoceros são ali presença habitual). E após um inesperado bacalhau com todos, no restaurante gerido pela empresa portuguesa Visabeira, estávamos prontos para a primeira etapa de um programa intenso: uma caminhada de três horas, seguida de uma noite num acampamento no mato,  sem cercas entre nós e os animais e acabado de inaugurar.
Fraser Gear, sul africano e há dois anos na Gorongosa, foi o nosso guia nesta experiência radical (ou não tão radical assim, uma vez que Fraser seguia armado e nós com as informações básicas de como nos havíamos de comportar) que é percorrer a pé uma pequena parte dos 400 mil hectares da área do parque, sem sabermos que animais podem ou não andar por perto. Acabámos por não ver muitos (um ou outro cabrito ao longe, muitas aranhas ao perto) mas vimos uma pegada de elefante, algumas pegadas de búfalos, excrementos mais ou menos recentes, a pele que uma cobra deixou para trás e várias pequenas colinas em forma de cone construídas por térmitas. Leio mais tarde no livro Uma Janela para a Eternidade - O Passeio de um Biólogo pelo Parque Nacional da Gorongosa, de Edward O. Wilson, que estes montículos são habitações de uma única colónia e organismos rigorosamente organizados, uma espécie de "fábrica dentro de uma fortaleza". 












Teve lugar cedo, às cinco e meia da manhã e sem incidentes nocturnos, o despertar no dia seguinte.  O plano era tomar um pequeno-almoço ligeiro (havíamos de voltar para um mais completo) e partir para uma nova caça aos animais, desta vez motorizados. E ao longo das quatro horas em que percorremos muitas das picadas do parque e a planície em redor da Casa dos Leões (construída em 1940 e agora em ruínas) fomos felizes no que aos animais e às paisagens diz respeito: vimos muitas impalas (em bandos de muitas fêmeas e um macho), alguns facoceros (desta vez não de joelhos, como habitualmente fazem para ficarem mais perto da erva de que se alimentam), manadas de inhacosos (também conhecidos por pivas e facilmente reconhecíveis pela marca redonda branca que têm por trás), algumas aves, bandos de macacos (na Gorongosa há babuínos-amarelos e macacos-de-cara-preta) e uma manada imensa de elefantes (Fraser, que nos acompanhou de novo, achou que podiam andar perto dos 100). E quando estávamos quase a desistir, um ligeiro movimento debaixo da vegetação chamou a atenção para o esconderijo de quatro leões, dois machos e duas fêmeas. Apesar de muito sonolentos, foi este um final perfeito para o nosso game drive - que teve direito ainda a um furo num dos pneus do jipe.
A fauna da Gorongosa, que serviu de alimento para soldados e população, foi em grande parte morta durante os 16 anos de guerra civil e continuou a sê-lo depois com a caça furtiva em grande escala - só os crocodilos, rápidos a fugir, e algumas espécies de animais muito pequenos terão escapado sem grandes danos. Pelo que percorrer o parque e ver o resultado do imenso trabalho de repovoação e de reintrodução das espécies que entretanto desapareceram ou ficaram reduzidas a poucos animais é um prazer.




































Depois do safari matinal, foi a tarde dedicada à canoagem no rio Púnguè (tem cerca de 400 quilómetros e nasce no Zimbabwe), uma das novidades na programação da Gorongosa. Um passeio que vale a pena pela beleza das suas margens, pelas aves que o habitam (são imensos os coloridos abelharucos que fazem os ninhos em buracos mesmo junto à água), pelos crocodilos que não chegámos a ver (e talvez tenha sido melhor assim), pela tranquilidade ao longo do percurso e pela recepção à chegada, com direito a um novo pôr-do-sol e a um piquenique inesperado, com bebidas frescas acompanhadas de umas chamuças ligeiramente picantes e que pareciam acabadas de fazer.
O regresso dos seis aventureiros, dos três guias e canoistas (um por canoa) e do motorista ao campo de Chitengo, onde havíamos de dormir a segunda noite, foi feito já sem luz natural e apenas com um foco que ia varrendo a escuridão. E através do caminho selvagem, cheio de vegetação e de alguma lama de que falei no início. Não chegámos por isso ao fim sem juntar ao furo da manhã um atolamento para a história dos perigos que corremos na Gorongosa.
Mas as emoções do dia ainda não tinham terminado. Tínhamos no programa mais um jantar no meio do mato, mas desta vez na companhia de 36 pessoas (e, soubemos depois, de leões por perto) e num local a mais ou menos meia hora de carro de Chitengo. Entre os presentes estavam alguns jovens que prosseguem os seus estudos com o apoio do projecto de restauração do parque (um dos rapazes, apaixonado por insectos, há-de ir longe), a investigadora de leões Paola Bouley (criou em 2012 o projecto Leões da Gorongosa), o quase mítico Greg Carr (o norte-americano que se apaixonou pela Gorongosa e que assinou com o Governo moçambicano em 2008 um acordo de 20 anos para a sua recuperação) e também um grupo de cientistas acabados de regressar de uma expedição à Coutada 12, antiga reserva de caça já fora da zona do parque, onde passaram três semanas a estudar cobras e batráquios e a comer muito esparguete com atum.
As mesas, com toalhas brancas de pano, estavam postas para nove ou dez pessoas e à nossa sentou-se Vasco Galante, director de comunicação da Gorongosa. Que acabou por falar mais do que comer, tendo-nos contado um pouco da sua história (chegou a Moçambique em 2005 para dar aulas em regime de voluntariado e juntou-se pouco depois à equipa da Gorongosa) e da história trágica do parque (de como este serviu de "talho" ou "fonte de proteínas" para soldados e população sem outros recursos) ou falado de como o norte-americano que inventou o voicemail e fez fortuna no sector das telecomunicações aparece nesta história.
O filantropo Greg Carr, o mais novo de sete irmãos, ouviu falar pela primeira de Moçambique em 1997, em Harvard, através de um trabalho da moçambicana Terezinha da Silva, defensora dos direitos humanos. Mais tarde, foi convidado pelo Governo de Moçambique para visitar os parques e reservas do país e consta que quando sobrevoou a Gorongosa, em Março de 2004, terá dito um "é aqui". Greg Carr, que andava por ali enquanto ouvíamos a sua história, acabou por ir até à nossa mesa e um dos presentes aproveitou para lhe perguntar "Porquê a Gorongosa?". Respondeu-lhe que tinha feito o seu "homework" antes de lá chegar. 
























Para a manhã do último dia estava prevista uma visita à comunidade de Vinho, do outro lado do rio Púnguè e lar de muitos dos funcionários do parque (e onde uma parceria entre a aldeia e a Gorongosa permitiu construir um posto de saúde e uma escola). Mas por causa do acesso difícil devido às chuvas recentes foi trocada por uma deslocação ao Centro de Educação Comunitária, que nesse fim-de-semana recebia um grupo de 30 crianças da Escola Samora Machel, da aldeia de Mussinha.
O Centro de Educação Comunitária, inaugurado em 2010 e a funcionar nas imediações do parque, é um projecto de arquitectura ecológica assinado pelo sul africano Allan Schwartz (ver aqui). Constituído por vários dormitórios, um refeitório, salas de aulas, um posto médico com um enfermeiro residente, tendas para cientistas e investigadores, uma biblioteca e uma plataforma em madeira onde se pode praticar yoga, realiza o CEC um trabalho meritório de educação ambiental para as comunidades da zona - alunos e professores, funcionários do parque e líderes locais.
As crianças, a quem se tenta passar a mensagem de que uma Gorongosa sem caça furtiva, sem abate de árvores e sem queimadas interessa a todos, recebem-nos com cantigas bem ensaiadas e ligadas à temática ambiental. E é na sua companhia, e também da de Domingos Muala, antigo professor e agora gestor do Programa de Educação Ambiental, que regamos algumas mudas de plantas e assistimos à plantação de uma nova árvore, uma xanfuta.
Regressamos ao Chitengo fazendo um desvio pela única zona vedada do parque (não sem antes nos cruzarmos com um camião carregado de troncos de árvores abatidas ilegalmente e entretanto apreendidos). Trata-se de uma área utilizada nos últimos anos para a reintrodução de espécies que desapareceram ou quase desapareceram durante os tempos da guerra. É actualmente habitada por 17 zebras, três acabadas de nascer. Serão postas em liberdade, fora da cerca, quando o seu número garantir uma reprodução sem problemas da espécie.



















No campo de Chitengo, aproveito as últimas horas para fotografar a pedra colocada aquando da visita do Presidente Américo Tomás em 1964 ou a parede do antigo restaurante furada em 1973 pelas balas da Frelimo e que permanece no local para lembrar a destruição causada pela guerra. E também para ouvir as últimas histórias relacionadas com o projecto de recuperação em curso.
Vasco Galante sentou-se de novo à nossa mesa (e desta vez troquei o bacalhau com todos por um bacalhau com broa) e mostrou-nos alguns vídeos que tem no seu iPad. Alguns são de ataques dos inteligentes e traumatizados elefantes da Gorongosa. Foram estes animais dos que mais sofreram durante o tempo de destruição do parque, guardando os poucos sobreviventes na memória as coisas terríveis a que assistiram nessa altura (e alguns assistiram à morte de todos os familiares, de toda a manada). Agora, é preciso proceder a um processo de habituação à presença dos humanos, o que desde 2011 está a cargo da "encantadora de elefantes" (o termo é do biólogo Edward O. Wilson e assessor científico do parque) Joyce Poole.
Era quase hora de partir (seriam  mais três horas de voo panorâmico até Maputo). Mas antes de embarcar, pergunto a Greg Carr - que aparece junto à pista para se despedir - como espera ver a Gorongosa daqui a dez ou 20 anos. "Better, better, better", responde sem hesitação. Oxalá tenha razão.

















O programa de três dias na Gorongosa, com partida do aeroporto de Maputo à sexta e regresso no domingo à tarde, custa 49.650 meticais por pessoa em quarto duplo (cerca de 810 euros ao câmbio actual). Inclui voo num pequeno avião da CR Aviation (o nosso era um Cessna 208B Caravan e tinha nove lugares), duas noites de alojamento, pensão completa, três safaris em jipe e um pôr-do-sol no rio Púnguè. Reservas (também possíveis para estadias durante a semana) através do telefone 00258 21321663 ou do e-mail getaways@qe-mz.com.

Da cidade da Beira a Chitengo são 155 quilómetros e segundo a aplicação Rome2Rio são precisas duas horas e trinta e oito minutos para fazer a viagem de carro (ou como se diria em Moçambique 2h38 "de tempo"). Na realidade, será preciso um pouco mais, devido ao mau estado da estrada, mas esta é outra das opções para chegar ao parque.

O parque encerra de meados de Dezembro até meados de Abril, altura da estação das chuvas. E após a abertura algumas picadas poderão permanecer fechadas até se tornarem de novo transitáveis.

O Montebelo Gorongosa Lodge & Safari, no campo de Chitengo, gerido pela empresa portuguesa Visabeira, oferece diversos tipos de alojamento: de campismo em tenda própria por 320 meticais ou noites em tendas equipadas por 1480 (2100 para dois) a quartos para dois a 4300 ou bungalows a 5125.

As tarifas de entrada no parque são de 100 meticais para os moçambicanos, de 10 dólares para residentes em alguns países africanos (com comprovativo) e de 20 para estrangeiros. Em todos os casos há descontos de 50 por cento para jovens dos 10 aos 17 anos.

Safaris de jipe ao amanhecer e ao final do dia, com a duração de três horas (1050 meticais por pessoa), visitas à comunidade de Vinho (400 meticais) ou assistir ao pôr-do-sol em Bué Maria (600 meticais) são algumas das actividades disponíveis. Safaris em carro próprio não são por agora permitidos (talvez em 2017 seja possível fazê-los em algumas picadas).

No site do Parque Nacional da Gorongosa conta-se a história do parque e a história do projecto de reabilitação em curso e mostram-se as paisagens (como a Serra da Gorongosa ou as planícies em redor do Lago Urema) e os animais que nele habitam (dos maiores ao mundo em miniatura). O site disponibiliza ainda muitas fotografias e diversos vídeos - e vale mesmo a pena ver um deles, O Guia, da realizadora Jessica Yu, premiada com um Óscar.


Comentários

  1. Obrigado pela bela descrição.Sou Moçambicano, aqui nasci e aqui vivo(Maputo).Há já alguns anos atrás, no inicio deste trabalho do Carr acampei com tenda própria vários dias...a Gorongosa é linda...na altura vi poucos animais porque a recuperação do parque ainda estava no inicio, como disse, mas também é preciso referir que a vegetação é fabulosa....toda a Serra da Gorongosa é espetacular...quem puder lá ir não perca....vá mesmo....Abraço Xico Nunes.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pelas palavras simpáticas. Regresse um dia se puder. Eu gostava de voltar também.

      Eliminar
  2. Excelente memoria viva de uma verdadeira aventura à busca do que a natureza tem de melhor... Parabens Helena pela autenticidade do texto e das imagens!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Foi uma boa aventura. Valeu a pena termos passado o risco

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares