E Paris continua bela

"Paris é uma cidade de que se poderia falar no plural, tal como os gregos falavam de Atenas, porque há muitas parises e a dos estrangeiros só superficialmente tem algo em comum com a Paris dos parisienses. A não ser que se tenha perdido realmente tempo numa cidade, ninguém poderá considerar que a conhece bem."
Julien Green, Paris

No quente mês de Agosto de 1991, 22 anos antes da estreia do filme A Gaiola Dourada, de Ruben Alves, instalei-me na pequena casa de uma porteira portuguesa no douzième arrondissement, não muito longe do Bois de Vincennes, e apaixonei-me irremediavelmente por Paris. Durante duas semanas percorri uma boa parte da cidade, os grandes boulevards mas também as pequenas ruas (de Saint-Germain-des-Prés, do Quartier Latin, da Íle de Saint Louis), naveguei no Sena e passeei à beira dele, visitei jardins e museus (no Louvre, fiquei esmagada pela sua dimensão), subi à colina de Montmartre e fiz uma incursão nocturna, de carro, pela moderna La Défence (e também pela Avenue Foch, local então animado pela troca de casais).
Depois disso era preciso voltar (afinal, não tinha chegado a subir à Torre Eifell nem visitado o  Musée d' Orsay). E foi o que aconteceu em 1993, altura em que me instalei durante dois meses em Levallois-Perret para um abençoado estágio no World Media, uma organização de vários jornais do mundo sediada na sede do Libération, perto da Place de la République. E em 1995, em 1996, em 2004, em 2005, em 2013 e muito recentemente durante o Campeonato Europeu de Futebol.
E tinha pelo menos três objectivos bem definidos para os três dias da estadia: visitar a exposição de Amadeo de Souza Cardoso (uma oportunidade única para ver o conjunto da sua obra na cidade para onde se mudou no dia em que fez 19 anos),  deliciar-me com um couscous royal e regressar ao bar de jazz Caveau de la Huchette (local de muitas visitas durante a estadia de 1993). E foi o que cumpri logo no primeiro dia, por esta ordem e ainda com mais algumas coisas pela meio.
Fiz a pé o caminho entre a Église de la Madelaine, o templo das 52 colunas que demorou 80 anos a ser construído, e a Place de la Concorde, com a grande roda e o obelisco de Louxor em destaque (e o que custou transportá-lo para Paris) e segui depois até ao Grand Palais. Foi ali, durante três meses, que puderam ser vistas as obras que Souza Cardoso produziu nos seus 30 anos de vida (morreu em 1918 vítima da gripe espanhola) e que pertencem aos espólios do Centro de Arte Moderna, da Gulbenkian, do Museu de Amarante e de outras colecções.  E também fotografias do artista, cartas que escreveu, muitas para o tio Francisco, que representava uma espécie de intermediário entre os seus sonhos e as exigências mais austeras do pai, e muitas notas sobre a sua vida e obra.
Depois de percorrer as salas do edifício construído para a Exposição Universal de 1900  e foi um prazer percorrê-las na companhia de Amadeo , prossegui o passeio um pouco ao acaso. Aproveitei o sol e as vistas na Promenade des Berges de la Seine André Gorz (onde uma placa mostra até onde subiram as águas do Sena nas recentes cheias de Junho), almocei num barco por ali ancorado, o Rosa Bonheur sur Seine (simpático e baratinho para uns petiscos), e tive a sorte de apanhar um concerto de uma orquestra de câmara na Square Jean XXIII, nas traseiras da Notre-Dame (leio à entrada que foi criado em 1848 e que é considerado o mais antigo jardim público de bairro).
Objectivo exposição de Amadeo cumprido, estava programado para a noite o outro ponto alto da viagem. Depois de um couscous no Le Lutin (ver notas finais), passei umas horas felizes no Caveau de la Huchette, um bar de jazz carregadinho de História (na idade média terá sido local de reunião de templários, mais tarde loja macónica e desde 1946 um lugar que recebe todas as noites músicos franceses e do mundo). Já por lá não anda o empregado português Inácio, de São Brás de Alportel, que com o seu grande bigode e com as suas camisas coloridas era frequentemente caricaturado (estando os muitos desenhos expostos na altura por cima do bar) mas de resto está tudo igual: o ambiente continua escuro e descontraído, a pista continua cheia de pares que parecem profissionais (eles com sapatos de duas cores), a música, para ouvir e dançar, continua excelente (na noite em por lá passei actuava o Jeff Hoffman Trio). Desta vez, não saí lá de madrugada mas podia tê-lo feito: de quinta a domingo fecham tarde as portas deste templo do swing.
Para a manhã seguinte estava reservada a concretização de uma ideia antiga: conhecer o tranquilo cemitério de Père-Lachaise (uma das entradas é no número 16 da adequadamente denominada Rue du Repos). Criado em 1804 para substituir cemitérios mais pequenos e com condições insalubres e para dar a todos o direito de ser sepultado (o que até então não acontecia aos artistas, aos saltimbancos ou a quem se suicidava), o Père-Lachaise é um imenso jardim plantado com mais de 4 mil árvores e que acolhe mais de 69 mil sepulturas. Muitas delas são de mortos famosos (a de Jim Morrison, ou James Douglas Morrison, será das que atrai mais visitantes mas há outras, como a do escritor Marcel Proust, cobertas de bilhetes de metro com uma pedrinha em cima para não voarem), outras de mais anónimos, outras ainda muito recentes, como a de Suzan Garrigues, que aos 21 anos foi uma das vítimas mortais do atentado ao Bataclan, na noite de 13 de Novembro de 2015.
E na Paris pós atentados a vida continua. Tranquila à beira do Sena, animada nas esplanadas, muito policiada nas grandes galerias comerciais e principais atracções turísticas e com as forças de segurança em alerta máximo. No regresso de Père-Lachaise, vi uma parte dos Campos Elísios interdita a peões e a trânsito por um carro ter sido abandonado pelos seus ocupantes ao embater num semáforo. E a esplanada do belga Lèon de Bruxelles, onde me propunha degustar uma cerveja gelada e uns mexilhões (há-os à la creme, com caril, fritos, gratinados), a ser evacuada de emergência. 
Para o último dia reservei uma boa descoberta (o Musée de l´Orangerie, um dos que abre à segunda-feira e que acolhe a colecção reunida pelo marchant d'art Paul Guillaume), um regresso (à Notre-Dame, que apesar dos muitos turistas continua sempre a fascinar-me e a comover-me, quase até às lágrimas, com a sua grandiosidade) e o que mais gosto de fazer em Paris: vaguear. No livro de Julien Green, de onde roubei a frase inicial, há uma palavra – flâneur  que ficou deliberadamente por traduzir e que significa "aquele que passa o tempo passeando sem destino pelas ruas e praças". Ou ainda "ocioso", "vadio" ou "polidor de calçadas". Hei-de voltar a Paris e entregar-me apenas à flânerie.































































































Paris, de Julien Green (1900 – 1998), é uma edição da Tinta da China, com tradução de Carlos Vaz Marques. Filho de pais norte-americanos emigrados, Julien Green nasceu em Paris e aí viveu quase toda a sua vida, excepto nos tempos de estudante e durante a II Guerra Mundial.

O velhinho Caveau de la Huchette (5, Rue de la Huchette) está aberto todos os dias. De domingo a quarta das 21h30 às 02h30 (bilhetes a 13 euros) e de quinta a domingo das 21h30 até de madrugada (bilhetes a 15 euros). Programação e pormenores curiosos sobre a sua história aqui.

O Le Lutin (3, Rue Bourdaloue), junto à estação de metro Notre-Dame-de-Loretta, no neuvième arrondissement, serve bons couscous (e também tajines) a preços simpáticos: o de frango custa 13 euros, o de cordeiro e merguez 15. O La Gazelle, no número 15 da Rue des Trois Freres, na colina de Montmartre, visitado noutra altura, está por agora fechado por não ter sido renovado o contrato de arrendamento (no Youtube há um vídeo que conta a história, envolta nalguma polémica). Estivesse aberto e ganhava com grande margem em matéria de simpatia e qualidade de atendimento ao agora experimentado  apesar do guia Le Routard dedicado a Paris (edição de 2013) dizer que se vai ao Le Lutin sobretudo pela gentillesse de Moustapha (e também pela cozinha marroquina incomparável).


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