Ilha de Moçambique: a ilha onde todos os que chegam ficam amigos

Tinha de assinalar uma data especial num sítio especial e a escolha recaiu sobre a Ilha de Moçambique - ou apenas Ilha, para os locais e para os mais íntimos. Já lá tinha estado em Janeiro de 2016 e o desejo de regressar à que foi capital de Moçambique entre 1507 e 1898 (e que desde 1991 é Património Mundial da Humanidade) era pelo menos tão grande como a História que marca este pedacinho de África. Um pedacinho, que muitos consideram mágico, com cerca de três quilómetros de comprimento por cerca de 300 a 400 metros de largura e ligado ao continente por uma ponte estreita que data dos anos 60 do século passado.
Foi uma visita curta, com duas noites passadas no quarto Açafrão do jovem Feitoria Boutique Hotel (e os três dias seguintes à descoberta das povoações e praias maravilhosas da costa continental em frente à Ilha), mas feliz. Depois de na primeira vez ter feito check nos principais pontos de interesse (a muito fotogénica Fortaleza de São Sebastião, que acolhe no seu interior uma antiga cisterna e a bela Capela de Nossa Senhora do Baluarte, o velho Hospital, que continua a desempenhar as funções de hospital mas serve também de local de habitação para a população da Ilha, o Jardim da Memória, que presta homenagem aos escravos que ali foram comercializados, o Museu, antigo Palácio de São Paulo, a Igreja da Misericórdia e o Museu de Arte Sacra, logo ali ao lado, a mesquita central, pintada de verde escuro, ou o velho Tribunal, outrora Convento de São Domingos) dediquei agora o tempo a alguns regressos obrigatórios, a novas sessões fotográficas ("Faz-me uma selfie", pedem-me alguns miúdos assim que ponho os pés na rua) e à descoberta de novos recantos e sabores. O que fiz em muito boa companhia.
Tive a sorte de me cruzar na Ilha com o português Rui Veloso (que dispensa apresentações) e com o moçambicano Sérgio Veiga (que por fazer tanta coisa tem de ser apresentado: é marinheiro e pescador, escritor e pintor, caçador e ambientalista, mergulhador e produtor de documentários televisivos), com quem já tinha jantado uma semana antes na Ponta do Ouro, no extremo sul de Moçambique. Com os dois, entre outros companheiros de estadia, regressei à ilha dos Sete Paus (que tem a água mais verde, mais transparente e mais quente que imaginar se possa), participei numa sessão de petiscos e numa espécie de tertúlia musical e não só (com direito a uma boa conversa e a ouvir Porto Sentido e O Prometido é Devido, esta última numa versão muito original) e descobri que a matapa de siri siri é um prato obrigatório da gastronomia local. Com o Sérgio, e mais de uma dúzia de miúdos agarrados a nós e à nossa volta, passeei à descoberta de vendedores de colares de missangas. E aprendi que estas serviam de moeda de troca nas transações comerciais feitas por ali (quantas missangas valeria um escravo?) e que durante muito tempo abundavam nas praias, onde eram apanhadas por missangueiros. Agora é proibido apanhá-las, por serem consideradas património de todos.
À ilha dos Sete Paus, tranquila, deserta e perfeita para um dia de praia, rumámos no barco Não Fala Mais, propriedade de Genito, mais conhecido por Harry Potter, um rapaz que nasceu na Ilha e que por ali sempre viveu. E que para além de marinheiro (já tem outro barco em construção, que está na antiga Capitania e que se há-de chamar A Vassoura de Harry Potter) é também músico e cozinheiro (um peixe grelhado, acompanhado por um caril, que no caso mais significa molho, e um polvo acabado de comprar a um pescador no meio do mar foi a ementa do piquenique).
Parte do percurso de regresso à Ilha, depois de alguns banhos de mar em água-quase-a-ferver, é feito à vela, aproveitando o vento de feição. E à nossa direita vemos as casinhas do paradisíaco Coral Lodge, logo a seguir, mesmo à beira mar, um embondeiro considerado sagrado pelos locais, mais à frente, à esquerda, a ilha de Goa e o seu farol.
À chegada, no Pontão, abundavam os miúdos para nos receber (já lá tinham estado para se despedir). E um deles, o Julinho, que de manhã tinha aproveitado para pedir um autógrafo ao Rui, quando percebeu que ele era um músico famoso ("Um músico tem de ter sempre caneta", disse-lhe, quando viu o seu autógrafo em vias de não se concretizar), vende-lhe desta vez, com jeitinho, um desenho feito por si no Páteo d' Artes Ilha de Moçambique, também conhecida como Associação.
E a Associação, instalada numa casa com porta para o lado do mar (e um tranquilo terraço) e outra para a Rua dos Arcos (a rua nobre da Ilha, onde se localizavam as principais casas comerciais, que tinham geralmente esta dupla funcionalidade), há-de ser o nosso destino para o final da tarde e noite do segundo dia (e pelo meio um belo jantar no restaurante Sara). Trata-se de um projecto de Helena Perestrelo (engenheira civil e pintora que se instalou na Ilha há cerca de um ano, depois de ter vivido em Moçambique até aos 49 anos e depois disso em Portugal e também na Irlanda, Grécia, Espanha, Chile, Panamá e novamente Moçambique), de portas abertas para as crianças locais, que ali podem pintar, ler, brincar (algumas gostam de puzzles) ou ter apoio (com materiais e uniformes) para continuarem a estudar.
Jacinto (de apenas sete anos e com queda para as artes e de quem tenho agora quatro pequenas aguarelas), Nuhy (que talvez não saiba mas que na primeira visita à Ilha me conquistou o coração),  Julinho (o menino do autógrafo e que recebeu entretanto de presente uma semana de férias em Maputo de uns amigos que passaram o fim de ano da Ilha e que se deixaram encantar por ele), Antiki, Abdul ou Imo são alguns dos miúdos que têm pequenas obras à venda (por cem meticais, que revertem para os artistas) na associação de Helena Perestrelo - a quem acabo por roubar o título que dei a este texto: "A Ilha é um sítio onde todos os que chegam ficam amigos".
Na manhã do último dia, um domingo (e depois de um último encontro com Nuhy, agora mais crescido, praticante de taekwondo e ainda vendedor de bolinhos), percorro em jeito de despedida a Rua da Contra Costa, onde se localiza a estátua de Camões (esteve na Ilha, cantada nos Lusíadas, entre 1541 e 1542), o Cine Teatro Nina (leio na página do Município da Ilha no Facebook que funcionou até 1998 e que depois disso foi transformado em armazém de búzios), a antiga piscina (em obras e transformada em discoteca) ou a ruína do edifício que pertenceu ao Sporting Clube de Portugal (ainda lá está o leão, pintado numa parede). E já na cidade de macúti, não resisto a fotografar um pescador do clube rival, acabado de sair do mar e com um emblema do Benfica estampado nas calças ("Sou cem por cento benfiquista", confirma), uma mulher com a cara coberta de mussiro (que usa sobretudo quando está em casa, para cozinhar e para não queimar a pele) e um dohw com uma grande vela feita de imensos retalhos. E era tempo de seguir viagem para o continente (ver aqui).

























































































Há voos de Maputo (a partir de 145,63 euros pela Fastjet e à volta de 260 pela LAM, pesquisa feita na  Edreams), Joanesburgo, Dar es Salam ou Nairobi para Nampula e também de Maputo para Nacala. De Nampula até à Ilha são 175 quilómetros e pelo menos duas horas de tempo, de Nacala são 112 e um pouco mais de hora e meia de trajecto. É possível fazer a viagem em carro alugado, chapa (opção mais económica mas mais demorada e menos confortável), táxi (a Feitoria trabalha com motoristas que cobram 5000 meticais por trajecto, cerca de 75 euros, a partir de Nampula) ou outro tipo de transfer.

O belo Feitoria Boutique Hotel, localizado sobre o mar e mais ou menos a meio da Ilha (na Rua Amílcar Cabral, na cidade de pedra e cal), tem 20 quartos com nomes de especiarias e produtos que noutros tempos se comercializavam por ali e preços para 2018 de 95, 120, 135 e 150 euros. Tem também uma piscina exterior, um restaurante com produtos do mar e locais e uma esplanada de onde não apetece sair (não perder o pôr do sol). Mais informações e reservas no site, através do e-mail info@feitoria.co.mz ou do telefone 00258 849696963.

O também boutique hotel Villa Sands, vizinho do Feitoria e construído no local onde se erguiam três armazéns do século XVI, a pensão O Escondidinho (também vale a pena ir lá jantar), os bed & breakfast Jardim dos Aloés e Casa Azul, as guest houses Terraço das Quitandas e Páteo dos Quintalinhos (ou Casa Gabriel), a pousada Rickshaw (que também é restaurante), o Café Central (quartos duplos no Booking por 37 euros com pequeno almoço) e o hostel Rubi Backpacker são outras opções de alojamento na Ilha.

O restaurante Karibu, no bairro do Museu e no fim da Rua dos Arcos, tem um imperdível atum com sementes de sésamo e um atendimento bem simpático por parte do proprietário, Jorge Forjaz.  Foi a escolha para o jantar da primeira noite e foi um bom regresso. Contacto: 00258 843802518.

No Bar da Sara (Sara Ismael Viegas é o nome completo da proprietária), que fica na Rua da Saúde, em frente ao velho Hospital e na fronteira entre a cidade de macúti e a cidade de pedra, cozinham-se  carvão matapas de siri siri (uma bela surpresa este prato local feito com uma espécie de beldroega do mar e amendoim) e também de folhas de mandioca, caril de caranguejo e de camarão com arroz de coco (e também com chima ou batatas fritas), camarões cozidos ou grelhados ou filetes de peixe papagaio.  Uma boa descoberta. Contacto: 00258 847605737 ou 00258 827982774.

Na associação Pateo d' Arte Ilha de Moçambique é possível petiscar matapas e outros pratos locais, com marcação prévia, no tranquilo terraço que dá para o lado do mar. Na noite da nossa passagem decorria o evento especial Petiscos da Machamba  (cozinhados por uma amiga de Helena Perestrelo), no qual era possível provar matapa de moringa (feita com folha de moringa, amendoim, feijão e leite de côco), sardinhas pequenas do Índico feitas com limão, ceviche de espadarte ou djassa (uma espécie de vieira pequena) com leite de côco. Contacto: 00258 845031776 ou página no Facebook.

É alta a probabilidade de os miúdos da Ilha pedirem aos visitantes de tudo um pouco ("Helena, chinelo", "Helena, caderno", Amiga, bola", "Amiga, calção), uns com mais jeitinho e mais calma, outros mais desesperados, muitos sugerindo uma passagem pelo mercado (onde se vendem bolas e chinelos, pois claro). Dar ou não dar e como dar é uma escolha de cada um, mas fazê-lo através de uma instituição (eu optei por enviar posteriormente por uns amigos jogos, livros e materiais de pintura para o Páteo d' Arte) ou de uma escola talvez seja uma boa opção.

As viagens de um dia que Genito Harry Potter realiza à ilha dos Sete Paus custam, com almoço incluído, 1800 meticais por pessoa (cerca de 25 euros). Mais informações sobre outros passeios e reservas através do telefone 00258 845464817.

A empresa Ilha Blue Island Safaris, do inglês Pete Allsop e da australiana Gail Woods (dois viajantes que em 2010 se apaixonaram por Moçambique), realiza, entre outras actividades, passeios à descoberta da Ilha em bicicleta (25 dólares por duas horas e meia, com guia e contribuições para o templo hindu e para o Jardim da Memória incluídas), tours pelas praias à descoberta de missagas na companhia do "missangueiro" Selemane (10 dólares, duração uma hora e meia), passeios de barco com almoço à sombra de um embondeiro sagrado (40 dólares), safaris no mar com almoço e snorkelling incluído (50 dólares) e passeios de barco para observação de baleias (60 dólares, de Julho a Outubro). Mais informações no site ou através dos telefones 00258 841247161 ou 00258 843872168.

O moçambicano Sérgio Veiga é autor de dois livros, O Cântico da Galinha do Mato (editado em Portugal com o título O Quente Aconchego da Mãe Negra) e O Velho e o Mato (editado em Portugal nos Livros RTP). Os dois estão à venda na Wook, o primeiro por 10,64 euros, o segundo por 14,39. Em Maputo, estão à venda na Mabuko, que também tem loja na Internet.

Há um livro, Ilha de Moçambique, da Alcance Editores (2009), que conta o essencial da História da Ilha. De Eugénia Rodrigues, Aurélio Rocha e Augusto Nascimento.

Algumas impressões e fotografias da primeira ida à Ilha, em Janeiro de 2016, aqui e aqui. Texto sobre a inauguração da antiga Feitoria como hotel aqui.


Comentários

  1. Fantastico texto exaltando a terra que me viu nascer...Muito Obrigada!
    É tudo isso e muito mais!...
    Esta Ilha é mágica e só quem a visita sente o poder dessa magia contagiante!
    Bem Haja!

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  2. Obrigado eu. Ainda bem que gostou de ler

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