Desconfinando por aí: Alcoutim, Mértola e um salto a Espanha

"Quando o viajante entrava em Alcoutim, viu em sobranceiro monte um castelo redondo e maciço, com mais jeito de torre amputada do que construção militar complexa. Pela largueza do ponto de vista valeria a pena ir lá acima, pensou. Não foi. Julgava ele, enganado pela perspectiva, que o monte ainda estivesse em território português. Afinal, para chegar lá seria preciso atravessar o Guadiana, contratar barqueiro, mostrar passaporte, e isso já seria diferente viagem. Do outro lado é Sanlucar e outro falar."

Viagem a Portugal, José Saramago


Dois mil e vinte, que ganha desde já o primeiro prémio de sempre em número de escapadas feitas por cá num só Verão, corria o risco de ficar para a história das viagens como um ano 100 por cento nacional. Até me ter aparecido pela frente, ou em frente a Alcoutim, na margem esquerda do rio, o casario branco da aldeia espanhola de Sanlucar de Guadiana. Da vila algarvia até ao "estrangeiro" foram talvez nem dois minutos de barco, um investimento num bilhete de ida e volta de 2,50 euros e um almoço assim assim num asador que roubou o nome ao castelo que se destaca na paisagem  San Marcos. "Em Espanha tudo se serve com muito gelo", respondeu-me a empregada quando lhe pedi uma Cola bem fresca, que matasse o calor. Acabei por ter direito a uma pedra, a acompanhar as tapas pedidas.

E em Alcoutim, na altura livre de Covid 19 e agora com dois casos confirmados, o que pode o visitante encontrar? A praia fluvial de Pego Fundo, localizada na Ribeira de Cadavais, perto da foz do Guadiana (pena a música alta num final de tarde no Tá-se Bem Beach Club), um castelo que começou a ser construído no século XIV para defender a fronteira, o que resta da muralha do século XVII, a Igreja Matriz São Salvador, uma ermida dedicada a Nossa Senhora da Conceição, a Igreja da Misericórdia, onde uma placa lembra até onde chegaram às aguas das cheias de 7 de Dezembro de 1876, um restaurante com boa vista e umas lulas a deixar vontade de voltar, o Sítio do Costume, e ali perto, na Praça da República, um memorial que recorda os militares do concelho "que perderam a vida em defesa da pátria". Em Moçambique morreram José Afonso Vaz, de Alcoutim, em 1970, e Eduardo Cavaco, da freguesia de Pereiro, em 1971.

Alcoutim tem ainda dois bons pretextos para se planear uma viagem até lá. A possibilidade de experimentar "a única tirolesa transfronteiriça do mundo", um "salto" em rapel de 720 metros sobre o Guadiana, a uma velocidade de 70 ou 80 quilómetros por hora, com partida do lado espanhol (mais informações sobre calendário, preços e reservas no site da Limite Zero). E o Festival do Contrabando, que costuma acontecer em Março (e este ano desmarcado por causa da pandemia) para relembrar uma parte importante da História da região. Nessa altura, é a vila animada por teatro de rua, música, oficinas, mostra gastronómica, exposições. E uma ponte pedonal flutuante que une o Algarve à Andaluzia durante os três dias do evento.
















Quarenta e um quilómetros a norte de Alcoutim encontra o viajante a vila alentejana de Mértola, onde nos instalámos na Casa Amarela, na zona de Além Rio. Do nosso quarto, o Quarto do Rio, tínhamos a melhor vista para as muralhas, as casas pintadas de branco, o castelo, a Igreja Matriz que já foi antiga mesquita, a Torre do Relógio, o Guadiana, os barcos a passar. E tínhamos um restaurante mesmo ao lado, o restaurante da Casa Amarela, com um mil folhas de bacalhau a entrar para a história das coisas boas que se comem por aí.

Fazia calor em Mértola, passava dos 30 graus, e todas as coisas frescas eram bem vindas: o vinho branco da Herdade da Bombeira a acompanhar as refeições, os gelados comprados ao final da tarde ao senhor Amândio, 79 anos e 60 a cozinhar sabores, na Avenida Aureliano Mira Fernandes, em frente à sede do PCP e à Junta de Freguesia (são os gelados Nicolau, nome do pai do actual vendedor e que se dedicava ao mesmo ofício) ou os banhos na praia das Azenhas do Guadiana.
























Saindo de Mértola pela ponte em direcção ao lado esquerdo do Guadiana, apanha-se a EN 265 para alcançar, menos de duas dezenas de quilómetros à frente, a Mina de São Domingos, que é aldeia alentejana (a primeira do país a ter luz eléctrica) e antigo complexo industrial mineiro. Da mina, que funcionou entre 1854 e 1966, embora a  exploração mineira na zona, na altura de ouro, prata e cobre, remonte ao tempo pré-romano e romano, restam agora uma lagoa de águas ácidas, as ruínas das antigas oficinas ferroviárias (do complexo fazia parte uma das primeiras linhas férreas construídas em Portugal, que ligava a mina ao porto fluvial do Pomarão e permitia o escoamento, sobretudo para Inglaterra, do minério) ou ainda parte da estrutura do que foi o antigo cais.

Antes ou depois de percorrer o antigo complexo, é obrigatório numa visita à Mina de São Domingos tomar um banho na praia da albufeira da Tapada Grande e almoçar, de preferência um cozido de grão, na Casa de Pasto A Taberna. Por fazer ficou a Rota do Minério, a PR10, um percurso circular de 14 quilómetros que parte do antigo complexo industrial e que segue ao longo ou em paralelo à antiga linha férrea, passando pela Estação da Moitinha, por Achada do Gamo (que era o centro das actividades metalúrgicas e onde existia a fábrica de enxofre, da qual restam ainda duas torres muito fotogénicas), pela aldeia de Santana de Cambas e por alguns trilhos usados noutros tempos por contrabandistas.




















Aconteceu-me algumas vezes, em África, ter de sair do carro para abrir portões que permitiam seguir viagem por reservas de animais ou por paisagens daquelas que nos fazem sentir felizes por andarmos por aí. Também me aconteceu na recta final desta escapada de quatro dias ter de abrir e depois fechar o portão da propriedade privada (e à venda) que dá acesso à queda de água no Guadiana conhecida como Cascata do Pulo do Lobo ou apenas Pulo do Lobo. E sobre ela escreveu Saramago na sua Viagem a Portugal"Isto não é Portugal, é um pedaço enxertado doutro mundo, o que resta de monstruoso meteorito que veio do espaço, e caindo se partiu para deixar passar a água da terra."

O Pulo do Lobo é uma fenda no Guadiana, onde as margens se aproximam tanto que, diz a lenda, um lobo as terá conseguido transpor. Chegar lá, pelo lado de Mértola (também se pode ir pelo lado de Serpa mas aí é preciso fazer o caminho final a pé), implica percorrer 17 quilómetros de uma estrada estreita mas com o piso em bom estado. Já não "um estendal de pedras soltas, um sobe e desce de buracos e lombas", como no tempo do Saramago viajante. 









O Hotel de Alcoutim, localizado na Avenida de Espanha, com piscina exterior e à beira do Guadiana, tem quartos para dois a 45 ou 55 euros (os mais caros com vista rio), mais pequeno almoço opcional a 6, 8 ou 10 euros. Mais informações e reservas: 281546324 ou 911503400.

Os donos da Casa Amarela, que trocaram a cidade pelo regresso às origens, têm, para além desta (com um apartamento T1 para quatro pessoas e dois quartos duplos), a Casa da Tia Amália, com seis quartos e um apartamento, e a Casa do Castelo, um T0 no centro histórico da vila. Mais informações para o alojamento através do 918918777, reservas para o restaurante com o 286094102.

Passeios de barco no Guadiana podem ser realizados com a empresa Happy Guadiana (969002218) ou com a Beira Rio Náutica (913402033). A Pureland aluga canoas, pranchas de paddle e realiza passeios de 4x4 (968972619).

Os vinhos da Herdade da Bombeira, localizada a sul de Mértola e à beira do Guadiana, podem ser comprados no centro da vila, na Rua Dr. Afonso Costa, 33 (sem qualquer indicação no exterior). Mais informações: 286612287.

A casa de pasto A Taberna nas Minas de São Domingos tem pratos do dia - cozido de grão, lombo no tacho ou tiras de choco - a 5 (meia dose) e 7 euros (dose, que dá para dois) e serviço de take away. Mais informações: 916016450.

Mais informações sobre a história da Mina de São Domingos e outras (como onde comer ou dormir) podem ser lidas no site da Fundação Serra Martins, instituição que visa proteger e divulgar o património do antigo complexo mineiro.


Comentários

Mensagens populares