Açores: 24 horas no Corvo
O Corvo, ilha habitada por muitos gatos e por cerca de 386 pessoas, segundo dados do Censo de 2021, é a mais pequena do arquipélago dos Açores, com os seus 17 quilómetros quadrados e uma dimensão de 6,5 de comprimento por 4 de largura (mas também com um litoral alto e escarpado e uma das maiores arribas do Atlântico, que se eleva a 718 metros). E estando na vizinha Flores é destino a não perder, sendo que há quem vá e volte no mesmo dia ou quem decida pernoitar por lá. Nós embarcámos ao final da tarde no Cais das Poças, em Santa Cruz das Flores, e percorremos as 13 milhas que separam as duas ilhas a bordo de um turbulento Ariel, regressando 24 horas depois num semi-rígido, numa viagem menos dura e sobretudo mais arejada, por o Ariel se ter avariado. Avaria que talvez tenha sido fruto da intervenção de Nossa Senhora dos Milagres, a quem nem foi preciso pedir que tal acontecesse.
E foi perto da Igreja de Nossa Senhora dos Milagres, a igreja matriz, que encontrei Odete Vieira, 77 anos, viúva há cinco, natural do Corvo e devota da padroeira da ilha, cuja festa se comemora a 15 de Agosto. Mora na única povoação ali existente, a Vila do Corvo, localizada na parte mais baixa e plana, uma fajã lávica, e constituída por um aglomerado de casas que se estende por ruas estreitas e outras ainda mais estreitas a que chamam canadas. Quando a encontro, na Rua da Matriz, fala-me dos seus problemas de saúde (está a perder a visão) e conta-me que antes, quando gostava de apanhar polvos, "via por sete, dentro e fora de água".
Devia-lhe ter pedido que intercedesse junto de Nossa Senhora, cuja imagem é de origem flamenga e que segundo a lenda terá sido encontrada na baía dentro de um caixote, para que o tempo melhorasse no Corvo. Não pedi e não melhorou, pelo que ficou por ver a atração principal, o Caldeirão, uma cratera de abatimento com quase 4 quilómetros de perímetro e uma lagoa no fundo, onde se formam algumas ilhotas. Só vimos o nevoeiro que o envolvia e voltámos para trás, pela estrada que foi construída nos anos 50 mas que só foi alcatroada em 1995. Não houve condições para fazer o trilho que desce até ao interior da caldeira e a percorre a toda a volta. Nem para fazer o Trilho do Índio, que tem uma formação rochosa de basalto que foi sendo esculpida pela erosão até parecer o que os corvinos acreditam ser a cara de um índio.
Valeu-nos percorrer, na manhã do segundo dia com o guarda chuva aberto, as ruas da Vila do Corvo, onde fomos encontrando alguns habitantes (todos menos faladores do que Odete) ou nos cruzámos com a sede da Associação Corvo Vivo, que anunciava num placard exterior a existência do formulário A Voz do Povo, que todos podem preencher com sugestões, elogios ou reclamações relativos ao Corvo e à sua comunidade, ou informava quais os pontos de venda do jornal Tramela Aberta (na loja do Cabral, na mercearia Pedras e Pedras, na loja da Maria João ou no minimercado Fátima Valadão), que vai na quarta edição e cujo nome é inspirado na expressão que ali se usa para designar fechadura (mais informações sobre esta publicação na página da associação no Facebook). E valeram-nos os três fotogénicos moinhos de vento que restam dos seis que existiram na Ilha e os dois museus, o Centro de Interpretação de Aves Selvagens, instalado numa casa que foi habitação e também um "chapo" (termo por ali usado para carpintaria), e sobretudo a Casa do Tempo – Ecomuseu do Corvo.
A Casa do Tempo, localizada na Rua das Pedras e inaugurada em 2019, acolhe e divulga informações sobre a História da ilha, que noutros tempos se chamou Ilha de Santa Iria, Ilha dos Corvos Marinhos ou Ilha do Marco, pela sua posição geoestratégica e por ser alta, e que foi ponto de passagem das grandes rotas transatlânticas, durante os séculos XVI e XVII, o que atraía piratas e corsários provenientes da Turquia, de Marrocos ou de Inglaterra. Ali se fala das tentativas falhadas de povoamento da ilha e do carácter comunitário da vida em sociedade e se ouvem testemunhos de corvinos sobre as tradições locais. Alfredo Emílio, então com 75 anos, sempre residente no Corvo tirando o tempo em que esteve no Ultramar, conta como era vivido o Dia da Lã, dia de festa, de tosquias, das crianças fumarem com autorização dos pais ou de comer pão de trigo (trigo que durante o ano era usado para pagar altos impostos). Maria Filomena Nunes, 68, conta que as famílias coziam pão, muitas vezes de junça, em casa e que quando esse estava "duro como o diabo" se levava a "refrescar" a casa de um vizinho que acendesse o forno. Maria de Fátima Jorge, 71, conta que ia descalça na procissão de Nossa Senhora dos Milagres e que só não ia à procissão quem estivesse acamado. Lino Fraga fala da "festa de família" mais importante, a matança do porco, quando os miúdos dormiam nas cozinhas, deitados em junco, e as mulheres lavavam as tripas à beira mar e depois em casa, com laranja ou casca de milho.
Do Museu seguiu a volta pelo Corvo para um almoço no Caldeirão (já que o verdadeiro não se deixou ver), um dos três restaurantes da ilha, com boa vista sobre o mar e os moinhos de vento. E à tarde, fazendo tempo para o regresso, percorremos mais uma vez a Vila do Corvo: o Largo do Outeiro, que durante séculos funcionou como o local onde os mais velhos tomavam as decisões, o Largo do Marouço, que era o local de encontro dos mais jovens, a Ladeira do Maranhão, onde restam duas eiras das 36 que existiram na ilha. E voltei a encontrar Odete, a caminho da Igreja para marcar uma missa em memória de um primo e afilhado do marido que morreu há 53 anos na guerra em Moçambique – morreu a 6 de Agosto, a notícia chegou a 12 e o corpo, enterrado no cemitério do Corvo, havia de chegar em Fevereiro. Enquanto me despedia, apontou para as Flores e perguntou-me se eu sabia que começava nesse dia a festa do Cais das Poças, que tem um cortejo, concertos, barraquinhas de comida e a distribuição de um caldo de peixe à população e visitantes num dos dias do evento. Sabia e foi para lá que segui, depois da travessia, felizmente menos tonta e enjoada do que no dia anterior, depois da viagem no Ariel.
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