Flores, Açores: uma overdose (boa) de trilhos e natureza

Há quem considere a ilha das Flores, a mais ocidental dos Açores e a pender mais para a América do que para a Europa, uma vez que está assente na placa norte-americana, a mais bela do arquipélago. Há também quem a chame paraíso, ou relíquia, e outros que a acham um dos lugares mais bonitos do mundo, caso do Viajar Entre Viagens. As Flores, classificada pela UNESCO como Reserva da Biosfera, é terra de lagoas e de ribeiras, de cascatas e de piscinas naturais, de fajãs e de arribas altas, de ilhéus e de penedos, de miradouros e zonas de merendar, de milhões de hortênsias que florescem no Verão e de florestas de cedros do mato, de nevoeiros e de chuvas frequentes (ou de dias em que o sol aparece), de trilhos nem sempre fáceis e de actividades carregadas de adrenalina (já ouviram falar de canyoning?), de festas e de igrejas, uma por cada povoação, de tostas de erva patinha, que são assim uma espécie de pataniscas feitas com uma alga que só se apanha no Inverno, e de feijão assado, uma feijoada que vai ao forno e que leva açúcar na receita. E de gente que vale a pena conhecer. 

As Flores, que contava com 3429 habitantes no Censo de 2021, é terra de florentinos e de açorianos de outras ilhas, como Carlos Silva, do Pico, que desde os anos 80 recupera, com a mulher, Teotónia, natural das Flores, a Cuada, uma das ofertas de alojamento mais interessantes, por preservar a memória de uma aldeia que ficou sem ninguém nos anos 60, fruto da emigração. Mas também de continentais, muitos professores ou polícias, e de estrangeiros que se apaixonam pelas Flores, como a belga Eugénie Nottebohm, artista e velejadora desde 2007, que atravessou recentemente o Atlântico em solitário e que acaba de comprar uma casinha na Ponta da Fajã (e que tem o plano de navegar em breve de Buenos Aires, onde deixou o veleiro, até à Patagónia). Ou de estrangeiros que ponderam ficar ali "para sempre", caso da ucraniana Marina Krivchenko, que se instalou nas Flores há seis meses, quando fugiu da guerra, e que agora faz massagens capazes de relaxar qualquer ilhéu ou de dar uma vida nova ao viajante mais cansado.

A procura turística pelas Flores tem estado em alta, pelo que nos meses de Verão pode ser impossível alugar carro ou reservar alojamento. Nos dez dias em que por lá andámos (e um no Corvo, pelo meio) percorremos a ilha ao volante de um carro emprestado e, por opção, a pé. Mas também à boleia da amiga que nos acolheu na sua casa na Fazenda de Santa Cruz ou de Juliano, um dos moradores da Ponta da Fajã, o local das Flores com mais alto risco geológico, onde aconteceram derrocadas em 1987 e 2009. Contratámos ainda os serviços de Luís Freitas, continental há 30 anos na ilha, que nos conduziu até ao trilho PR01FLO, que une Ponta Delgada à Fajã Grande, em grande parte com o mar por companhia e o ilhéu de Monchique, o pedaço de terra mais ocidental da Europa, no horizonte. E que pelo caminho nos foi falando dos cubres, as flores amarelas que originalmente cobriam as Flores, ou da importância da presença dos franceses na ilha ("Discreta mas importante"), que por ali tiveram uma base de rastreio de mísseis balísticos de 1966 a 1993. Foram eles os responsáveis pela electrificação da ilha ou pela construção de um hospital onde se faziam cirurgias e partos. Hoje, só por acidente se nasce nas Flores, sendo que a maior parte das grávidas são encaminhadas um mês antes da data prevista para o parto para o Faial.

A volta pela ilha, que acabou por ser uma volta completa, começou e terminou nas sete lagoas. Primeiro, pelas quatro que integram o Parque Natural do Morro Alto e Pico da Sé, sendo elas as  fotogénicas Negra ou Funda (a mais profunda das Flores, com 115 metros, mas que também se podia chamar Verde) e Comprida. E ainda a Seca, que havíamos de voltar a ver com alguma água depois de umas chuvadas, e a Branca, que avistamos quando íamos já lançados no trilho que liga o Miradouro das Lagoas à Fajã Grande (e foram quatro horas para fazer 7,3 quilómetros, incluindo uma interminável "escadaria" em pedra e lama que desce do topo da falésia até ao mar, também conhecida por "escadinhas do céu"). Para a manhã do último dia ficaram as outras três: a da Lomba, toda coberta de nevoeiro (e onde já não se pode tomar banho, só pescar) e as imperdíveis Funda e Rasa, que ficam nas proximidades da aldeia de Mosteiro e da Rocha dos Bordões, uma estrutura geológica feita de colunas rochosas verticais.

Completaram o programa nas Flores banhos de mar nas piscinas naturais do Altio, em Santa Cruz das Flores, e nas da Fajã Grande; um banho na cascata do Poço do Bacalhau; uma descida até à Fajã de Lopo Vaz, que tem uma praia de areia negra e na altura cheia de caravelas portuguesas ou de "águas vivas", como nos Açores se chama às alforrecas (trilho PRC04FLO, com uns duros 3,4 quilómetros de extensão); uma ida ao Poço da Ribeira do Ferreiro, um conjunto de várias cascatas e lagoa a que os locais chamam também Poço da Alagoinha ou Lagoa das Patas ("Já visitaram o Poço da Ribeiro do Ferreiro?", foram-nos perguntando ao longo da estadia); um passeio de carro pela Costa Nordeste até ao Farol de Albernaz, com passagem pelos miradouros dos Caimbros e dos Cedros, pela Fajã da Ponta Ruiva e por Ponta Delgada; uma visita ao Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão, em Santa Cruz, que conta tudo sobre a arte de "arriar" baleias, que os florentinos aprenderam com os norte-americanos. Tivemos ainda direito a festa, no caso à do Cais das Poças, que teve desfile de grupos e colectividades locais (e este ano com críticas ao fim das vacas leiteiras: "A última ordenha. A partir de agora só carne", lia-se num cartaz), concertos, barraquinhas de comida e distribuição gratuita de um caldo de peixe à população e visitantes, momento alto do programa, que aconteceu no dia 7 de Agosto. E à realização de uma actividade bastante radical.

"Deus vos ajude", disse-nos Marco Melo, da West Canyon, quando o conhecemos numa das noites da festa e lhe dissemos que na manhã seguinte tínhamos reserva com ele. E Deus, ou algum santo padroeiro de viajantes destemidos ajudou. Devidamente equipados com botas, capacete e várias camadas de roupa de neoprene (uma camisola de manga comprida, um macacão, um casaco e meias), "caminhamos" pela ribeira Além Fazenda, no vale da Fazenda de Santa Cruz. É ali um dos locais onde Marco, que se dedica ao canyoning desde 2006, realiza o nível 1 de uma actividade que consiste na descida de um curso de água com declive, através da marcha, de deslizes, de rappel, de saltos para a água e de descidas em slide. Neste primeiro nível (o que não significa uma actividade isenta de dificuldades) a maior "vertical" tem 18 metros, sendo que no nível 2 sobe para 45 e no nível 3, que Marco faz no Poço do Bacalhau, para 115. Mas isso só eventualmente noutra vida. Já um regresso às Flores pode ser ainda nesta.


Lagoa Negra e Lagoa Comprida


Lagoa Seca


Lagoa Branca


Vista do trilho PR03FLO para a Fajã Grande


Vista do trilho PR03FLO para a Fajã Grande


Paço do Bacalhau, Fajã Grande


Piscinas naturais da Fajã Grande, a praia mais ocidental da Europa


Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão, Santa Cruz das Flores


Vista para o Corvo da Costa Nordeste das Flores


Ponta Delgada


Farol de Albernaz, Ponta Delgada


Fajãzinha


Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, Fajãzinha


Poço do Bacalhau, Fajã Grande


Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Ponta da Fajã Grande


Igreja de Nossa Senhora do Rosário, Lajes


Fajã de Lopo Vaz, Lajes


Fajã de Lopo Vaz, Lajes


Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, Santa Cruz das Flores


Piscinas Naturais do Altio, Santa Cruz das Flores


Alagoas, Costa Nordeste das Flores


Desfile da festa Cais das Poças, Santa Cruz das Flores


Poço Ribeira do Ferreiro


Poço Ribeira do Ferreiro


Igreja Nossa Senhora de Lourdes, Fazenda de Santa Cruz


Vista para o Corvo do trilho PR01FLO


Vista para a Fajã Grande do trilho PR01FLO


Pormenor do Trilho PR01FLO


Trilho PR01FLO, Ponta da Fajã Grande


Aldeia da Cuada, entre a Fajã Grande e a Fajãzinha


Casa do José Maria, Aldeia da Cuada


Lagoa Funda


Lagoa Rasa


Rocha dos Bordões, perto da estrada que liga Lajedo a Mosteiro


Não há voos directos entre o Continente e as Flores, pelo que é preciso viajar via Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, Faial, na Horta, ou aeroporto das Lajes, na Terceira. Nesta viagem, marcada em cima da hora para ser feita no último mês de Agosto, voamos com a Ryanair de Lisboa para a Terceira (escala de cerca de 3 horas) e com a SATA da Terceira para as Flores. O regresso foi via Ponta Delgada, também com a SATA (aproveitando para fazer uma estadia de três dias) e depois com a Ryanair para Lisboa. O custo foi de 375 euros por pessoa para os quatro voos.


Autatlantis (292542278) e Ilha Verde (292542372) são as empresas de rent a car presentes nas Flores e para conseguir alugar um dos seus carros para os meses de Verão é necessário reservar com bastante antecedência e estar disposto a pagar tarifas pouco económicas. Várias simulações para o mês de Setembro em curso indicam que não há viaturas disponíveis na Autatlantis e que para o mês de Agosto de 2023 os preços começam em 82,33 euros por dia. Na Ilha Verde, os preços para Agosto do próximo ano começam nos 137,11 euros por dia.


A Noya Tours, de Luís Freitas, é uma das empresas que transporta turistas nas Flores, serviço indispensável mesmo para quem tem carro e quer fazer trilhos não circulares (no caso de não ter boleia disponível para o regresso). Um percurso da Fazenda de Santa Cruz até perto do Farol de Albernaz, rumo ao trilho PR01FLO, ficou por 30 euros. Informações e reservas: 917479341. Entretanto, contactos de outros táxis da ilha estão disponíveis no Centro de Turismo de Santa Cruz.


No que respeita a trilhos, há nas Flores quatro Pequenas Rotas e uma Grande Rota, caminhos reabilitados a partir dos que eram usados pela população, por cavalos e burros e pelo gado nas idas e vindas das pastagens. A PR01FLO, linear, difícil e com 12,9 quilómetros, liga a Fajã Grande a Ponta Delgada, sendo que nós fizemos apenas uma parte do trilho e no sentido inverso, com partida depois do Farol de Albernaz, junto à placa que indica 7,5 quilómetros (mais informações aqui). A PR02FLO, de dificuldade média, liga Lajedo à Fajã Grande ao longo de 13,1 quilómetros (não foi feita; mais informações aqui). A PR03FLO, que vai do Miradouro das Lagoas ao Poço do Bacalhau, foi o nosso trilho de estreia (7,3 quilómetros que demoraram quatro horas a fazer; mais informações aqui). A PRC04FLO, que parte do parque de merendas e vai até à Fajã de Lopo Vaz tem 3,4 quilómetros mas uma subida dura no regresso (ver mais aqui). A Grande Rota, que percorre grande parte do litoral ao longo de 47 quilómetros, tem neste momento a etapa 1, entre Santa Cruz das Flores e Ponta Delgada, encerrada (informação no site visitazores.com).


A empresa West Canyon, de Marco Melo, disponibiliza, para além das actividades de canyoning (60 euros para o nível de iniciação, duração de 3 a 4 horas, todo o equipamento incluído e um pão com doce caseiro no final, feito pela mãe, que também ajuda a lavar os fatos), passeios de jipe de meio dia ou de dia inteiro, um programa de descoberta da ilha do Corvo e acompanhamento com guia nas caminhadas entre Ponta Delgada e Fajã Grande (PR01FLO) e Lajedo e Fajã Grande (PR02FLO). Mais informações no site ou através do 968266206.


A aldeia da Cuada, localizada entre a Fajãzinha e a Fajã Grande, aluga 17 casinhas rústicas, em pedra, de várias tipologias (e mais uma a caminho), todas com o nome dos antigos proprietários: Palheiro do Pimentel, Casa do José Maria, da Esméria ou da Luciana. E tal como para o aluguer de carros, também aqui as reservas para a época alta devem ser feitas cedo. Dos mesmos proprietários, há também as Villas do Mar, na Fajã Grande, com 11 apartamentos, que em Março e Abril deste ano receberam refugiados da Ucrânia. Mais informações na página da Cuada no Facebook ou pelo telefone 292552127.


O Sítio da Assumada, vizinho da Cuada, com cinco casas T1 e T2, as Casas da Cascata na Fajã Grande, que incluem o Moinho da Cascata, com três quartos e uma localização de sonho junto ao Poço do Bacalhau (mais informações: 926582177) ou o Inatel Flores Hotel, em Santa Cruz das Flores, são outras das opções de alojamento.


E onde comer nas Flores? A Cuada tem, para além do alojamento, um restaurante considerado como um dos melhores da ilha e onde tivemos um almoço feliz (não é barato, fecha em final de Outubro ou Novembro e as reservas podem ser feitas através do 292552127). Em Santa Cruz das Flores tem boa reputação o Moreão, que tem pratos de peixe (reservas: 292542133) e na Fajãzinha o Pôr do Sol, à beira mar e com pratos como linguiça com inhame ou morcela com batata doce (reservas: 292552075). Há ainda o Papadiamandis, na Fajã Grande e assim chamado por causa de um navio liberiano que por ali naufragou em 1965, o Porto Velho, nas Lajes, onde uns filetes de peixe porco mal se conseguiam tragar, ou a roullote Flor de Lótus no porto de Ponta Delgada, que serve, garante o empregado, "umas das melhores kebab das Flores". Não vale a pena é procurar os "The best tacos in town" anunciados na Fajãzinha, numa placa em madeira pendurada numa árvore. Quem os fazia terá ido há uns meses para um lar, informa-me um rapaz que pintava na altura a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios.


O Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão, que preserva a maquinaria da fábrica que ali funcionou de 1944 a 1984, está aberto de terça a domingo das 10h às 18h. Nele se conta a história da baleação no mundo e na ilha das Flores (não perder o documentário inicial) ou se mostra como se fazia a vigia do litoral em busca de cachalotes e como se avisavam os baleeiros que deviam partir para o mar (com foguetes e mais tarde com rádios transmissores). Bilhetes a 1 euro.


As massagens de Marina Krivchenko, que comunica com os clientes utilizando o tradutor do Google, podem ser marcadas por WhatApp (+380 979728646) e realizam-se na Rua Senador Andrea de Freitas, 17, em Santa Cruz das Flores. Não tinham em Agosto passado uma tabela de preços fixa, sendo que cada um decidia o que pagar. Duram cerca de uma hora e meia e são feitas também com pedras quentes.


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