#7 Moçambicanos - Sérgio Cândido Veiga, Maputo

Talvez tenha sido o aparecimento de um avião Super Constellation nos céus da capital de Moçambique, no primeiro dia em que Sérgio Veiga foi à escola, que ficava ao lado do "espremedor de laranjas", como chama à Igreja de Santo António da Polana, a definir o rumo que deu à vida. Depois de ter saído da sala de aula para o ver, sem pedir autorização e impressionado pela cauda e pelos quatro motores, foi levado para dentro pela orelha por uma professora que não compreendeu a curiosidade e o entusiasmo do rapaz, então com seis anos. Foi aí que começou a pensar que tinha de escolher o seu próprio caminho, porque caminhos trilhados, que eram os mais fáceis, não eram para si. Por isso, o seu corpo continuou a ir à escola, mas o espírito foi ficando de fora.

Sérgio Veiga, que nasceu em Maputo em 1953 e é pai de três filhos e dono de um cão chamado Induna (chefe, em zulu), soube desde pequeno que queria ser caçador, pescador e desenhador. Dele dizia o pai que se o fechasse à chave na casa de banho ele pescaria um peixe na banheira, se o fechasse no quarto ele caçaria qualquer coisa. Lembra-se de ter feito o primeiro desenho com 4 anos, um barco, um peixe e uma barbatana de tubarão, que ofereceu à mãe e que ainda hoje tem. Com seis, pescou, na ponte da Costa do Sol, uma corvina com dois quilos e meio que o puxou para dentro de água ("Foi o meu primeiro troféu."). Quando andava na 8ª classe e estudava então na África do Sul, "subornou" o director com alguns quadros, para concluir o ano. E os estudos ficaram por ali, apesar de duas professoras o terem tentado convencer a estudar pintura e de os pais o terem forçado a continuar. Mas Sérgio Veiga, então com 17 anos, queria voltar a Moçambique, ser caçador e antes disso fazer a tropa. Esteve na recruta um ano e entretanto acabou a guerra. Tornou-se depois caçador profissional (ou caçador guia em safaris), actividade em que desde cedo acompanhava o pai.

Das várias coisas que queria ser não constava ser escritor, por não se achar um homem das letras. Mas acabou por o ser. E sobre o seu primeiro romance, O Cântico da Galinha do Mato, que em Portugal está publicado com o título O Quente Aconchego da Mãe Negra e faz parte do Plano Nacional de Leitura (o que deixou Sérgio "extremamente orgulhoso"), escreveu Mia Couto ser "uma das infinitas versões da impossível autobiografia deste homem que é pescador, caçador, pintor, viajante, marinheiro, ambientalista, produtor de documentários televisivos, operador de câmara, mergulhador." Sérgio Veiga tem ainda dois livros infantis publicados, A Primeira Vida de Mapichane e As Aventuras de Matoco, e um segundo romance, O Velho e o Mato. Um livro de 2014 que nasceu de uma conversa com João Rosado, antigo motorista do Consulado de Portugal em Maputo e pai de um amigo seu e companheiro de aventuras no mar. Disse-lhe na altura o Sr. Rosado, a quem dedica o livro, que ele era a pessoa certa para escrever uma história que adaptasse o nome da conhecida obra de Ernest Hemingway.

Foi só depois da morte dos pais que conheceu a história de parte da família, num encontro na cervejaria Cristal marcado por um "meio tio" arquitecto, que não conhecia e que também pinta e escreve e que, por coincidência, editou um livro com uma capa feita de um postal que Sérgio encontrou em tempos na África do Sul (e que esteve quase para utilizar no seu primeiro romance). A mãe de Sérgio, que sempre disse que o pai tinha morrido cedo ("Ser filha bastarda era o seu sofrimento."), foi levada para Moçambique com quatro anos, depois de ter nascido em Lisboa e de ter sido baptizada na Igreja de São Sebastião da Pedreira. A sua avó, de Bragança, de quem acha que era o "menino bonito", ficou grávida quando trabalhava na casa de uma família rica e acaba por ir para África, sem saber ler nem escrever (mais tarde ditava à filha cartas para os irmãos do Brasil ou de Trás os Montes). Aí vendeu "marmitas" com refeições prontas a comer, foi cozinheira num colégio de freiras na Namaacha e acabou por ter uma pensão em Maputo, A Ribatejana, que ficava na  Avenida Felipe Samuel Magaia e que foi nacionalizada na altura da independência, tinha a avó 88 anos.

O avô paterno era de Vila Real e foi para Moçambique, para a Escola de Artes e Ofícios da Moamba, como carpinteiro. E foi na Moamba, onde Sérgio tem agora uma cabana e uma espécie de refúgio no mato, que o seu pai nasceu. Durante cerca de 20 anos foi jogador de futebol, capitão de equipa, um dos "craques" da selecção, jogou com Mário Coluna e foi treinador de Eusébio, como adjunto de Severiano Correia. Trabalhou também nos caminhos de ferro durante muito tempo e como caçador profissional, actividade que sempre atraiu Sérgio (que tinha como função escolher o "troféu", nunca fêmeas ou machos jovens e saudáveis, e que raramente disparava). O pai, que acabou por conhecer a futura mulher na pensão da avó de Bragança, onde ficava para estudar em Maputo, era canhoto e tinha muito jeito para o desenho, fazendo-o com as duas mãos. Sérgio guarda uma caravela que ele fez metade com a mão direita, metade com a mão esquerda. E não gostava de música ("Internem-me se me virem a comprar um disco", costumava dizer), mas ouvia mesmo assim os discos de Elvis Presley da filha mais velha, que tem mais seis anos do que Sérgio. 

Uns tempos depois da independência, os pais decidem mudar-se para Portugal e Sérgio acompanha-os, acreditando na promessa de que lhe comprariam a passagem de regresso a um país que queria que fosse o seu. Quando não o fizeram, pintou quadros que vendeu no Rossio, em Lisboa, até conseguir os 19 contos necessários para o bilhete. Regressou a Moçambique em 1977 e aí começou a vida sozinho, indo à pesca com os pescadores nativos, fazendo caça submarina (que ainda hoje faz, apesar do Parkinson que lhe vai limitando os movimentos), caçando (até que deixou de "conseguir matar"). Entretanto, por esta altura, alguém que vive perto da Ericeira, em Portugal, tenta escrever a história de Sérgio Veiga, misturando factos reais (o facto de um dia ter pintado um quadro de uma velhota que vivia no passeio, em frente ao restaurante Mundos, poderá ser o ponto de partida) com partes ficcionadas. Sérgio ainda não sabe o que daí sairá.



Retrato feito a partir de conversas várias, principalmente da realizada em Maputo a 16 de Fevereiro de 2023. É o sétimo de uma série sobre moçambicanos a ser publicada aqui no blogue.


Comentários

  1. Querido Sérgio, a nossa saudade é muita!!! Não esqueceremos nunca aquela, viagem em 2016 e as imensas e interessantes histórias que ouvimos por aqueles dias! A generosidade marcou-nos... veio registada naqueles BigFive pintados em sua casa com os seus oleos e tela. Estamoa actualmente na Ericeira, onde os meua pais vivem. Abraço e Beijinhos do Nuno da Vera e da Maria!!!

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