Volta e meia digo, meio a brincar, ao meu mais habitual companheiro de viagem e emigrante em Moçambique, que a minha vida não é só África. Nos últimos tempos tem sido mais Lisboa e arredores e num dos últimos sábados foi uma mistura das duas. Visitei, integrada num grupo de 26 amigos e amigos de amigos, a Quinta do Mocho, que já foi bairro de má fama e ganha agora o prémio para o local com maior concentração de arte urbana na Europa.
Dois moradores, Emanuela Kalemba e Kally Meru, recebem-nos no exterior da Casa da Cultura de Sacavém para uma visita guiada pelo bairro, que formalmente se chama Urbanização Municipal Terraços da Ponte e que nasceu há 20 anos para realojar os moradores de duas torres inacabadas e construídas por J. Pimenta e do bairro de lata que foi nascendo à volta.
A Quinta do Mocho, onde noutros tempos houve tiroteios, mortes e assaltos, e onde há agora um bem humorado "Have u been stolen today??" a decorar uma das paredes, tem 81 empenas pintadas por artistas portugueses e do mundo, o que é um orgulho para os moradores (cerca de 3000, vindos sobretudo de Angola, Guiné, Cabo Verde e São Tomé e muitos já nascidos em Portugal) e um prazer para os visitantes (que foram mais de 3000 – e apenas os contabilizados – em 2017). E tem também uma lista de espera de mais de 100 artistas interessados em meter mãos à obra numa das 20 paredes ainda disponíveis.
A visita começa pela Amílcar Cabral, nome que não consta de qualquer placa toponímica, pois isso é coisa que não existe no bairro, e pelas primeiras pinturas, feitas em 2014, com os artistas acompanhados por escolta policial. Logo à entrada, há um retrato do político que dá o nome à rua e que foi o fundador do PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde, feito pelo muralista António Alves. E na parede, ao lado da pintura, há uma coroa de flores que costuma ser mudada no aniversário da sua morte. Amílcar Cabral foi assassinado em 1973 por dois membros do seu próprio partido.
Seguiram-se, ao longo de mais de três horas, histórias e curiosidades contadas à vez pelos dois guias. A Máscara, de Nomen, faz lembrar os tempos em que os moradores tinham de usar uma "máscara social" para arranjar trabalho ou mudar os filhos de escola, dando uma morada fora do bairro, o Nunca Deixes que te Digam Nunca, de Mário Belém, é um alerta para a importância de tentar realizar os sonhos, uma mulher africana com um lenço na cabeça, de Noe, só foi pintada depois da artista vinda do Uruguai se ter instalado no Mocho durante 15 dias, a Garça Real, de Bordalo II e feita com destroços, levou os moradores a duvidar de que de um monte de lixo nascesse arte. Há também um António Guterres que deu explicações de Matemática a alunos do bairro, já depois de ter sido primeiro-ministro, um Bob Marley pintado por Odeith (e se Bob Marley pode ter rastas por que não as podem ter os moradores do Mocho?) ou um DJ Nervoso desenhado e não esculpido por Vhils, por causa da fragilidade das paredes dos prédios, feitas de uma espécie de esferovite.
E o DJ Nervoso, serralheiro de profissão, actividade que mantém entre os compromissos artísticos, é um dos DJ's famosos da Quinta do Mocho. Lá moram também o DJ Marfox, que é o nome artístico de Marlon Silva, e o DJ Firmeza, que raramente está em Portugal. Sobre ele leio na página dos Guias do Mocho no
Facebook que "tem mais horas de voo que muito piloto".
Obras de arte e DJ's com carreira internacional à parte, a Quinta do Mocho é um bairro de ruas largas, com alguns espaços verdes, roupa estendida no exterior das casas e onde, diz-nos Ema, ovelhas e cabras se passeiam à vontade (e logo à chegada encontramos um bando delas). E onde os visitantes se podem cruzar com homens sentados em cadeiras ou sofás como se estivessem em casa, a beber uma cerveja ou a jogar um qualquer jogo de tabuleiro, com um senhor que vende legumes e fruta, com miúdos que brincam no parque infantil a precisar de novos equipamentos ou com os fiéis da igreja evangélica Bom Deus, onde a festa se faz com música e um grelhador montado na rua. Também há no bairro uma mesquita e uma igreja católica, construídas lado a lado e partilhando uma mesma parede.
Já depois da visita, peço ajuda a Ema sobre os nomes dos artistas de algumas das obras (se o nome de Vhils me era familiar, até visitar o Mocho nem suspeitava que havia um RAM ou um Huariu no mundo da
street art) e aproveito para lhe perguntar se acha que a arte de rua salvou o bairro. Ema acha que o Mocho foi salvo pela mudança de mentalidade dos próprios habitantes, mas que as obras contribuíram para abrir o bairro ao mundo e o mundo ao bairro, foram uma espécie de pontapé de saída. Hei-de voltar. Pela boa recepção e pela cachupa da Elsa, uma portuguesa que aprendeu há pouco a fazer também moamba de galinha.
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Casa da Cultura de Sacavém |
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Amílcar Cabral pintado por António Alves, antigo muralista do MRPP |
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Numa das paredes presta-se homenagem a António Guterres, que deu explicações de Matemática a alunos do Mocho |
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Pintura de uma mulher africana que transporta água à cabeça na fachada do café guineense Tchikinin |
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Pormenor do bairro |
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Molécula de água pintada por RAM, nome artístico de Miguel Caeiro, que pintou também a antena da MEO que estava ao lado. O morador a quem pertencia guardou-a na sala, não fosse a obra valorizar tanto como as de Vhils ou de Bordalo II |
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Sala de estar à sombra |
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Parque infantil a reclamar uma remodelação |
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Obra de Pol Corona |
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Obra do português José Carvalho (aka Oze Arv)
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Dois Dias, Quatro Paredes por Gregory Teboul (aka Astro) |
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Pormenor do bairro |
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A Máscara, de Nomen |
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Nunca Deixes que te Digam Nunca, de Mário Belém |
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True Love, de Tamara Alves |
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Pintura de Noe, artista do Uruguai |
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Obra do francês Alexandre Monteiro (aka Hopare) |
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Obra de Zezar, Uruguai |
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Obra do brasileiro Vespa |
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Obra do português Hugo Lucas |
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Obra do brasileiro Utopia |
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Paz no Mundo pelo peruano Pablo Machioli |
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Girafa pelo português Smile1art |
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DJ Nervoso por Alexandre Farto (aka Vhils) |
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Visceral, do português Violant |
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Obra da artista francesa Vinie Graffiti |
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O reflexo de uma beleza africana pelo português Huariu |
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Eminem, de Styler, pintada em Maio 2018 |
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Garça Real, de Bordalo II, nome artístico de Artur Bordalo |
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Pintura de Vira Lata, Brasil |
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Bob Marley por Odeith |
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Obra de Skio |
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Obra do chileno Charquipunk |
Os Guias do Mocho – Bairro de Arte Pública (e são eles Emanuela Kalemba, Kally Meru e Kedy Santos) realizam visitas guiadas de cerca de três horas pelos murais e pinturas do bairro. O preço é de 10 euros por pessoa para a visita e de 15 para a visita com almoço, para grupos menores de 10. Para grupos maiores de 10, a visita custa 5 euros e a visita com almoço 10. Reservas através dos telefones 961242526 (Ema) e 939765053 (Kally) ou através do e-mail guiasdomocho@gmail.com. Mais informações
aqui.
A Câmara de Loures, concelho onde existem no total 443 obras de arte pública (com tendência para aumentar), realiza habitualmente no último sábado de cada mês visitas guiadas também pelos Guias do Mocho, sendo que a próxima é no dia 30. Estas visitas, no âmbito do programa O Bairro i o Mundo, são gratuitas e não precisam de inscrição prévia. É só aparecer às dez da manhã na Casa da Cultura de Sacavém. Mais informações na página Loures Arte Pública no
Facebook.
As reservas para uma cachupa ou uma moamba de galinha no café da Elsa, que fica na Rua Pêro Escobar (também sem placa toponímica) e ao lado do mini mercado Maggie, podem ser feitas pelo telefone 964230983. No dia da nossa visita havia também iscas, frango e robalo como pratos do dia. Os restaurantes do Camilo e da Filó, os dois na Amílcar Cabral, são as outras opções para fazer uma refeição no bairro.
P.S. - Visitei a Quinta do Mocho de novo em Outubro de 2018 e em Novembro de 2019. A simpatia e a boa recepção dos guias mantém-se e a cachupa continua a ser uma boa razão para ir voltando sempre (na segunda visita voltei à da Elsa, na terceira experimentei a da tia Filó). Há entretanto pinturas novas nas empenas e apontamentos deliciosos do francês Maye em vários locais e o bairro já tem placas toponímicas pintadas por Pura Poesia. E também uma frase numa das paredes para publicar no Instagram, do mesmo artista: Sonhar é Grátis.
Excelente reportagem e magníficas fotos! Beijinhos do Miguel
ResponderEliminarObrigado Miguel. É a reportagem da primeira visita. Tenho de actualizar com este nosso regresso.
EliminarDa vontade de ir para a cachupa e para os murais. Deve ser uma experiência intensa contemplar tantos num mesmo bairro. E os habitantes como se sentirão no dia-a-dia? E se a Câmara de Loures mandasse pintar de creme umas paredes cegas, como já vi em Lisboa, como reagiria a população? Obrigado Helena, aprendesse bem com as tuas fotoreportagens
ResponderEliminar*aprende-se
ResponderEliminarÉ ir Jaime, quando o Covid acalmar. O bairro merece ser conhecido.
ResponderEliminarUma repetente que dá gosto de ler beijinho gigante e um até breve ass:Ema
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