Um retiro de três dias no Alqueva

Junte-se uma paisagem formada por uma albufeira com 1160 quilómetros de margem (maior do que a linha de costa do continente), 226 a 427 ilhas (consoante o nível de água), 16 aldeias ribeirinhas (também conhecidas como Terras do Grande Lago) e quatro praias fluviais (e uma quinta a caminho, no concelho de Alandroal) a uma estadia num monte alentejano rodeado de água quase por todos os lados e ocupado na totalidade por um grupo de amigos e o resultado é um fim de semana a entrar para o ranking das melhores viagens feitas por Portugal. Neste caso, por uma parte do maior reservatório de água doce em território português e maior lago artificial da Europa, o Alqueva, que nasceu oficialmente quase há vinte anos, com o fecho das comportas, no dia 8 de Fevereiro de 2002.

A mais mediática das aldeias ribeirinhas é a nova Aldeia da Luz, localizada entre Mourão e o nosso Monte do Caneiro, a cerca de sete quilómetros para cada lado, e construída não como uma réplica da velha Luz mas preservando as antigas relações de vizinhança. De ruas largas e casas brancas, quase todas com barras amarelas, azuis ou avermelhadas à volta das janelas, das portas e junto ao chão, foi construída de raiz para receber os habitantes da aldeia que foi demolida (por razões ambientais e para segurança da navegação) antes de ser submersa pelas águas da barragem. É lá que me cruzo com Florinda, natural da  Amareleja ("A aldeia mais quente de Portugal") e dona, há 51 anos, de um pronto a vestir ambulante, instalado numa carrinha que o marido conduz devagar pela Rua Dr. Francisco Sá Carneiro, num sábado de manhã, ao som de Ao Romper da Bela Aurora. Conta-me que há poucos habitantes na Luz, logo poucos clientes, que os mais velhos estão no lar ("Aquilo está cheio"), que não há empregos por ali e que há uns anos "era muito diferente".

A Aldeia da Luz, inaugurada por Durão Barroso no dia 19 de Novembro de 2002, já depois do fecho das comportas e com a população a ver o nível da água a subir, tinha na altura 373 habitantes, 212 casas, 11 estabelecimentos comerciais e 16 equipamentos colectivos. Hoje, diz-me Marta, que se mudou contra a sua vontade da velha para a nova aldeia ("Fomos empurrados para aqui") e é agora funcionária da Junta de Freguesia, a Luz tem 295 moradores (dados do último censo), entre os quais alguns recém chegados, cinco ou seis casais, tem muitas casas fechadas, talvez metade, a maior parte segundas habitações, mas tem tido nos últimos três ou quatro anos procura de casas para arrendar ou comprar. 

Tem também um cemitério transladado da velha aldeia e há muito lotado e a precisar de ampliação ("Foi um erro gravíssimo não ter sido feita uma projeção para 50 anos", diz-me ainda Marta), tem problemas com os esgotos e rupturas frequentes de água na via pública, tem uma escola que foi inaugurada com 28 alunos e que terá agora uma dúzia de crianças (algumas residentes em Mourão), tem o mini mercado Rosa Faria (eram três na altura da mudança), tem quatro cafés (A Lanterna e a Taska eram os mais concorridos, no dia em que passamos por lá, com vários homens a beber e a petiscar), uma padaria que cheira a pão quente (o negócio, familiar, vem também da velha Luz), uma queijaria, uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Luz e construída à imagem da original (com festa anual no primeiro fim de semana de Setembro e antes da pandemia com missa no último domingo de cada mês) e uma capela construída no centro da aldeia, no Largo 25 de Abril (e onde há missa com mais frequência). E um museu, que é a principal atracção turística, uma vez que as prometidas marina e praia fluvial nunca se concretizaram.

Construído entre a aldeia e a albufeira, com vista para o Monte dos Pássaros (uma casa agrícola que restou da aldeia desaparecida e que hoje contém um núcleo etnográfico) e tendo por perto um passadiço que conduz ao cais da Luz, o Museu da Luz é um projecto da EDIA  Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva. Ali se mostra, entre paredes construídas em xisto e através de fotografias, vídeos, mapas e alguns objectos do quotidiano, como foi o nascimento da nova aldeia e a submersão da antiga. Ou melhor, das terras onde se localizava, pois as velhas construções não ficaram de pé. A única edificação que permanece submersa é o vizinho castelo romano de Lousa, que foi coberto com uma espécie de carapaça protectora feita de sacos de areia e de betão antes de ficar debaixo de água.

No Museu da Luz, vale a pena investir algum tempo no  visionamento do documentário A Minha Aldeia Já Não Mora Aqui, de Catarina Mourão (tem uma hora de duração e é pena não ser exibido em ecrã maior e com o som mais perceptível). Nele se acompanham os tempos de mudança, a tristeza da maior parte dos habitantes ("É um desgosto muito grande", afirma uma das moradoras), alguma resignação por parte de outros ("A morte era pior do que isto", diz um senhor talvez a rondar os 70), a demolição da igreja cuja fundação remontava ao século XV, a última visita a um cemitério que havia de ser transladado ali para o lado do Museu, as primeiras idas às casas novas (e alguns a sentirem a falta de uma lareira para o Inverno e para o fumeiro), a chegada de autocarros de vários pontos do país com turistas que queriam ver a velha aldeia antes de esta ser tomada pelas águas ou conhecer a nova, a realização da última festa anual de Setembro na aldeia que iria desaparecer em breve, com o padre a pedir à população que faça "este sacrifício na hora do adeus". E na hora do adeus, há uma senhora que varre a casa, já despejada de todo o conteúdo, antes de a entregar para ser desmantelada.


























Depois de uma manhã de sábado na Luz, seguimos, em romaria de 16 e via Mourão, para Monsaraz e para a vizinha aldeia de Telheiro (onde vale a pena dar uma vista de olhos no centenário chafariz), para fazer duas coisas imperdíveis de qualquer programa no Alqueva: comer bem e navegar. Tratámos da primeira no Sem-Fim, um restaurante que já foi um antigo lagar de azeite e que foi comprado e recuperado pelo artista holandês Gil Kalisvaart nos anos 90 (e que o passou entretanto para o seu filho Tiago). Ali se servem, na antiga sala das prensas e na esplanada, pratos, vinhos e sobremesas do Alentejo que acabam por compensar a confusão à volta da reserva feita para o grupo e a pouca simpatia de um empregado para a resolver. 

O Sem-Fim, que é a peça na engrenagem do lagar que levava as azeitonas até à batedeira, não é só  um restaurante, é também um barco, onde havíamos de passar duas horas felizes. O veleiro em que seguimos foi construído na Holanda, em 1913, e transportava flores e outras mercadorias nos canais de Roterdão. "É 11 meses mais novo do que o Titanic", diz-nos o nosso capitão João Casado, que há um ano e pouco trocou a Ericeira por Mourão e que navega por estes dias nas águas calmas (e quentes, mesmo em Outubro) do Alqueva. O passeio, que teve início e fim na praia fluvial de Monsaraz, incluiu uma paragem na ilha Dourada, que tem grãos de areia que brilham ao sol ou sob a luz de um telemóvel, um lanche e um pôr do sol que só por si teria justificado a viagem ao Alqueva.
















Mas a viagem ao Alqueva não ficou por ali. O dia seguinte, um domingo que começou chuvoso, foi feito de um regresso ao Museu da Luz (faltava ver o documentário), de um almoço de despedida do  Monte do Caneiro (onde nos foi oferecido um check out tardio), de uma ida à praia fluvial da Amieira, inaugurada em 2019 e a maior do Alqueva, e também a Monsaraz, a aldeia vencedora do concurso 7 Maravilhas de Portugal na categoria Aldeias Monumento. É um prazer visitar nos seus arredores o Cromeleque do Xarez e o Convento da Orada,  percorrer as suas ruas empedradas, observar a fachada da Igreja Matriz de Santa Maria da Lagoa, subir ao castelo e ver a vista sobre o grande lago, fotografar e posar para a foto no meio da escultura com a qual o povo do concelho de Reguengos de Monsaraz presta homenagem a Joaquim Inácio Coelho Neves Cardoso ("Que colocou nos roteiros do mundo as belezas da velha urbe") ou comprar um vinho da Herdade da Ervideira na wine shop instalada na antiga escola primária da aldeia (e as paredes ainda ornamentadas com o abecedário completo e com as palavras Honra, Coragem e Fé). Um boa forma de fazer um tchim-tchim ao Alqueva. 





























O Monte do Caneiro, que fica a cerca de duas horas e meia de Lisboa (pela A6, são 208 quilómetros), tem alguns animais, entre cães, gatos, um cavalo e um burro, uma piscina, uma sala de refeições, um salão de festas e a albufeira do Alqueva quase a toda a volta. Permite alojar até 19 pessoas em 7 quartos, que foram buscar os nomes aos afluentes do Guadiana, sendo que é possível ser alugado só para um grupo (a partir de 600 euros por noite). Alugado individualmente, os quartos para dois, com pequeno almoço, custam 65 euros na época baixa ou 89 na alta. Mais informações no site ou através do 962537003.

Informações sobre o restaurante (que tem ementas para grupo a 16, 20 ou 25 euros) e o barco Sem-Fim (que realiza passeios individuais e para grupos, que vão desde uma hora de duração até expedições de dois dias) podem ser vistas no site. Ou obtidas pelo 266557471. 

Passeios de barco também podem ser feitos com a Alqueva Tours, empresa localizada junto ao paredão da Barragem. Alqueva com História, Lago, Rio e Afluentes, Pôr do Sol com Antão Vaz (que é um tinto alentejano) ou Alqueva com Sabores (que inclui um lanche com produtos locais) são algumas das propostas. Mais informações aqui.

O Museu da Luz está aberto de terça a domingo das 9h30 às 13h e das 14h30 às 17h30 de Setembro a Junho; em Julho e Agosto das 10h às 13h e das 14h30 às 18h30. Encerra às segunda e em alguns feriados. Os bilhetes custam 2 euros e ao domingo de manhã tem entrada gratuita. Mais informações no site  ou através do 266569257.

Mais informações sobre onde comer, onde dormir, o que fazer ou onde é possível observar, na companhia de quem percebe, o céu super estrelado do Alqueva disponíveis no site Roteiro do Alqueva.

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