#13 Moçambicanos – Gilberto Mendes, Teatro Gungu, Maputo
Talvez Gilberto Mendes, 59 anos, seja actor por causa de uma revista desportiva brasileira, provavelmente a Placar, que lhe foi oferecida pelo pai e que contava a história do nadador olímpico norte americano Mark Spitz. Enquanto o seu irmão se interessou mais pela parte relacionada com a morte de 11 atletas israelitas, raptados por um grupo palestiniano durante os Jogos Olímpicos de Munique de 1972, Gilberto deu mais importância às sete medalhas de ouro que Spitz ali ganhou e ao título do artigo, "Mark Spitz, Campeão Olímpico e Artista de Cinema" (depois de deixar a carreira de nadador, Spitz tentou ser actor e fez alguns trabalhos em televisão). Gilberto, que também é encenador, desportista, apresentador de programas de TV e ex-secretário de Estado do Desporto, pensou que um dia seria também as duas coisas. E foi atrás do sonho. Na altura fazia natação, integrando a selecção nacional moçambicana, e em 1980, com 14 anos, foi escalado para participar nos Jogos Olímpicos de Moscovo. Não chegou a ir, pois partiu o braço uma semana antes de viajar. Mas alguns anos mais tarde as coisas correram bem na estreia como actor. Depois de participar num casting, por sugestão de Maria Pinto de Sá, que era sua professora de desenho e actriz na companhia de teatro Tchova Xita Duma, Gilberto integrou o elenco da primeira longa metragem integralmente moçambicana, O Vento Sopra do Norte, de José Cardoso.
Gilberto considera que esta foi "uma maneira estranha de começar". Geralmente, começa-se no teatro, onde se treina, e depois vai-se para o cinema, onde se mostra o que se treinou. E no seu caso foi ao contrário. Cerca de um ano depois da estreia do filme, que aconteceu em 1987, Gilberto recebeu o convite para integrar a companhia de teatro Mutumbela Gogo, o que considera ter sido uma "escola fantástica", onde aprendeu "quase tudo". Integrou o grupo júnior, mas a vontade de saber mais era tanta que não faltava a nenhuma sessão do grupo principal, maravilhado com os actores profissionais em acção. Até que um dia, o colega Evaristo teve uma apendicite durante o espectáculo e foi levado a correr para o hospital. Foi quando a actriz Manuela Soeiro se lembrou que "lá em cima" estava alguém que já tinha visto a peça "milhentas vezes" e que estaria preparado para entrar em cena. E Gilberto entrou, sendo que agarrou a personagem e já não saiu.
Em 1992 decidiu criar a sua própria companhia e nessa altura andou por Maputo à procura de um lugar que fosse bom. Contando com o incentivo dos pais e fascinado com a história do local, decidiu-se pela zona baixa da cidade e pelo espaço onde hoje fica o Cine Teatro Gilberto Mendes, sede da companhia Gungu, localizado entre a Rua do Bagamoyo (antiga Rua Araújo, ou "Rua do Pecado") e a Avenida Mártires de Inhaminga. Por ali já tinha funcionado o antigo Cinema Dicca, onde Roberto Carlos actuou na única vez que esteve em Moçambique, e também o 222, uma sala mais pequena. E antes disso, entre 1912 e 1967, altura em que foi demolido, ali tinha sido o Varietá, uma sala de variedades fundada pelos irmãos Buccellato, italianos. Construíram um ringue de patinagem (onde terá nascido o hóquei em patins em Portugal), passavam cinema, teatro, principalmente coisas vindas de Itália, e como estava perto do porto era muito frequentado por marinheiros.
O teatro Gungu, que conta actualmente com 145 actores residentes, o mais velho com "noventa e picos" (e também com grupos de Gungulitos, Gungulinhos e Gungulinhozinhos), produziu até agora 107 peças, entre títulos como Vivendo Com a Sogra, Casais Imperfeitos, Corredores do Poder, Sexo Fraco ou Mulheres de Fibra. Todas ao estilo Gungu, com muita sátira política e social e interacção com a plateia. A companhia começou por só fazer teatro, depois teatro e cinema (com a portuguesa Marginal Filmes participaram na produção de Quero Ser Uma Estrela, que foi premiada no Festival de Braga, e fizeram também Um Rio, baseado num conto de Mia Couto) e agora outra vez mais teatro, sendo que as peças são apresentadas pelo país e em festivais em Portugal, no Brasil, Espanha ou Argentina. Mas os actores da companhia, que tem também um projecto de televisão, criado primeiro para a exibição das peças produzidas e agora em fase de criação de outros conteúdos culturais e desportivos, participam ainda em novelas ou em team buildings para empresas.
No segundo mandato do Presidente Filipe Nyussi, altura em que tinha na STV o programa Conexões do Gil e estava em cena no Gungu com O Profeta, Gilberto, que tinha entretanto sido presidente da Federação Moçambicana de Natação, participado na construção das duas piscinas olímpicas do Zimpeto e praticado também hóquei, hipismo, basquetebol, futebol, andebol e artes marciais, foi convidado para secretário de Estado do Desporto. E acha que esta missão correu bem, que se conseguiu devolver o orgulho que o país tinha perdido com a selecção nacional e também conquistar o título de campeão de África em modalidades com o boxe, voleibol ou o futebol de praia. Entretanto, quando aceitou ser político, Gilberto decidiu continuar com o teatro. Mas quando teve de escrever a primeira peça depois de ser nomeado só pensou "E agora?". Optou por não fugir da "linha" da companhia, tendo os temas abordados chegado a ser discutidos informalmente no Conselho de Ministros. O Presidente era entretanto da opinião de que era preciso estar preparado para a crítica, "que só assim é que se cresce". De 2020 a 2024, Gilberto entrou como actor em Segredos Femininos e A Valsa das Marandzas (esta sobre as mulheres interesseiras).
E como há imaginação para tanta peça? Gilberto, que tem a cabeça sempre a fervilhar, pronta para criar mais, para inventar todos os dias, acha que a realidade política e social do país ajuda. E rir dos problemas também. Mas considera que há uma diferenças na interpretação do humor quando a companhia apresenta o seu trabalho "cá" ou "lá". As reacções são distintas. Quando em 2000 foram ao FITEI, no Porto, onde apresentaram a peça Chove em Maputo, sobre umas cheias que deixaram o país "rebentado" e durante as quais uma menina, Rosita, nasceu em cima de uma árvore, pediam ajuda ao público no final para limparem o palco. E enquanto os moçambicanos que estavam presentes se riam, um português "ficou bravo" e desatou aos berros: "Vocês estão a rir-se pois estão aqui no bem bom. Mas os vossos irmãos está lá a sofrer". Com uma das peças mais recentes, Nação Dividida, aconteceria o mesmo: em Moçambique é uma sátira, em Portugal será uma peça com muito de trágico. "Se nós não buscarmos um bocadinho de humor em toda a tragédia que nos rodeia, a gente cai para o lado", conclui Gilberto.
Retrato feito a partir de uma conversa que teve lugar no Teatro Gungu, em Maputo, a 27 de Março de 2025, Dia Mundial do Teatro. É o décimo terceiro de uma série sobre moçambicanos a ser publicada aqui no blogue.
Retratos da primeira temporada da série Moçambicanos:
Retratos da segunda temporada da série Moçambicanos:
Muito inspirador! Espero compartilhar Minha experiencia tambem...pois escreve com delicadesa!!!
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