#14 Moçambicanos – Carlos Serra, Casa de Vidro, Macaneta

Professor universitário, formador, activista ambiental e incansável limpador de praias, Carlos Serra nasceu há 50 anos, feitos em Junho, na cidade da Beira, fazendo parte de uma família de origem portuguesa que permaneceu no país a seguir à independência. Mas nem toda a família ali ficou. Nessa altura, alguns familiares partiram para Portugal e para outros lugares, o que considera ter sido "uma ruptura muito grande" e um processo tão difícil para quem ficou como para quem partiu (acha que talvez um dia "a História se encarregue de contar"). Nas datas festivas não havia muita família para juntar, ao contrário de outras que se juntavam e era uma festa. Talvez para compensar, procurou sempre o calor nos amigos, nas pessoas com quem trabalha.

Carlos Serra pai, de quem herdou o nome, nasceu em Moçambique e a avó paterna, que decidiu sair a seguir à independência, também. Do lado da mãe, a história é mais recente. Os avós maternos, que foram para Moçambique por influência de um irmão da avó, chegaram vindos de Chaves em 1953, tinha a mãe então três anos. E por lá ficaram, embora nunca tenham mudado a nacionalidade para moçambicana. Ao longo da vida, formaram muita gente. Mecânicos no caso do avô, estudantes do secundário no caso da avó. O seu  funeral, em 2005, em Maputo, estava cheio de antigos alunos. 

Os pais de Carlos Serra também eram professores, davam aulas na Beira já antes da independência e mudaram-se para Maputo em 1976 para o pai continuar a estudar. O pai, que morreu entretanto, fez a licenciatura em História e trabalhou toda a vida para a Universidade Eduardo Mondlane. A mãe teve formação no Magistério Primário, com o foco em Educação Física, e deu aulas de desporto em escolas secundárias e depois passou para a que veio a ser a Faculdade de Educação Física e Desportos, da UniMaputo, antiga Pedagógica. Carlos Serra considera que quem ficou foi muito importante para assegurar o funcionamento do país nas várias áreas.

Tal como a irmã, Carlos Serra fez todo o percurso escolar, até aos 18 anos, em Maputo, num período "muito especial", no qual havia muita euforia, muito entusiasmo, mas também outras coisas que não correram tão bem. Desse tempo, recorda-se de duas viagens "fascinantes", uma à praia de Chongoene, na província de Gaza, e de outra à Ponta Malongane, vizinha da Ponta do Ouro, antes de a guerra chegar ao extremo sul de Moçambique. E depois disso, na "horrível" década de 80, vieram as notícias tristes, a crise económica, a redução drástica de alimentos, o tempo dos cartões de abastecimento para usar nas cooperativas de consumo, o tempo do carapau importado de Angola, do repolho que vinha das cooperativas de produção e da "xima amarela" (farinha), que era também importada. Carlos Serra considera que todos estes aspectos o ajudaram a moldar o que é hoje. Isso e a educação que lhe foi dada pelos pais, que lhe falavam muito de natureza e que criaram nos filhos hábitos de leitura. Lembra-se de ler Os Cinco, Os Sete e de a seguir à independência haver alfarrabistas a vender livros de pessoas que se tinham ido embora. 

Quando andava na 11º classe, uma professora de Português, uma portuguesa cooperante que viveu uns anos em Moçambique, disse-lhe, e também a um colega, que os dois tinham de ir estudar fora, para Portugal. Ainda nem tinha posto essa hipótese, quando deu por si com os papéis já tratados. Mas  quando saíram os resultados da bolsa da Cooperação Portuguesa que o havia de levar a Coimbra, estava já a frequentar o primeiro ano de Direito na Eduardo Mondlane (que não era a sua preferência, era mais Arquitectura, pela ideia de criar). E achou que não queria ir, até os pais o convencerem, depois de terem tido consigo uma "conversinha". Em Portugal, teve entretanto de fazer o 12º ano, mais Filosofia do 10º e 11º, que não havia em Moçambique, o que o levou primeiro a Vila Real, em Trás os Montes. Aproveitou para visitar Chaves, para conhecer a terra da mãe e uma parte da família, os primos em segundo grau, em terceiro grau, o tio avô Manuel. Ali encontrou também quatro irmãos do pai nascidos em Moçambique e que tinham vindo para Portugal. 

Já na Faculdade, não sentiu paixão pelo curso de Direito, antes um certo desencanto. Mas gostou de fazer amigos e também da pós graduação em Direito do Ordenamento do Território e do Urbanismo que fez no CEDOUA, da Universidade de Coimbra, com professores "muito à frente do tempo" e onde descobriu uma ponte para a temática ambiental. Regressou a Moçambique em 2000, depois de um casamento em Portugal que não correu bem, altura em que foi convidado para entrar para o Centro de Formação Jurídica e Judiciária do Ministério da Justiça, que tinha acabado de iniciar actividade. Trabalhou muitos anos a dar formação a magistrados e a administradores de parques nacionais, participou num projecto com o apoio técnico da FAO e o apoio financeiro dos Países Baixos, visitou o país todo, incluindo alguns dos lugares mais fascinantes de Moçambique. Viu coisas boas a acontecer, como a recuperação do Parque Nacional da Gorongosa. Mas também viu coisas erradas, como os recursos a serem explorados e a riqueza a ir para fora.

Entretanto, trabalhou durante quatro anos e meio para o Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural, quando era ministro Celso Correia, e ajudou a produzir alguma legislação, ajudou a formar professores em áreas tampão de alguns parques nacionais, mas principalmente ajudou a criar o Parque Nacional de Maputo e a Área de Protecção Ambiental de Maputo. Desde 2002 que é professor na  Faculdade de Arquitectura e na Faculdade de Direito da  Eduardo Mondlane e também no ISCTEM e é investigador no Centro de Direito do Ambiente, da Biodiversidade e da Qualidade de Vida, onde trabalha muito na área do direito à cidade. E em 2004, entrou para o activismo ambiental, pois achou que tinha de fazer mais, que não era suficiente ser formador. Considera que foi aprendendo até conseguir realizar o sonho de criar a Cooperativa de Cooperação Ambiental Repensar.

A ideia de criar uma cooperativa fascinava Carlos Serra há algum tempo e esta acabou por nascer de uma conversa de café, entre amigos, em 2013, tendo-se tornado realidade no ano seguinte. Começou por chamar-se Netumbuluko (que significa criação em changana), por inspiração de um livro de Mia Couto, e tinha na altura já o foco na promoção da gestão sustentável de resíduos, na promoção da educação ambiental a todos os níveis, na proteção e conservação dos ecossistemas, na procura do desperdício zero. A Operação Caco, de limpeza das praias de Maputo, a 18 de Abril de 2015, foi a primeira acção realizada. E foi um sucesso. Envolveu cerca de 1200 pessoas e acabou com uma grande montanha de vidro partido, que foi uma forma de chamar a atenção para o perigo de desperdiçar este recurso no ambiente.

Depois de uns anos um pouco à deriva, só a fazer limpeza de praias, a Repensar lançou em 2018, com o primeiro parceiro, a CDM - Cervejas de Moçambique, o programa Escola Ecológica. E a partir daí não parou de crescer, tendo actualmente a sua sede na Matola, um escritório na Beira que desenvolve actividades em menor escala e cerca de 150 colaboradores, muitos deles pessoas muito necessitadas, alguns com comportamentos aditivos. Foram entretanto lançados os projectos EconSila, na Machava, onde se produzem blocos a partir de vidro triturado e se levam a cabo acções de educação ambiental, ou o Praia Zero, que irá ser substituído pelo Praia Azul. 

Em Janeiro de 2021, nascia na Macaneta o que Carlos Serra considera ser a sua maior realização, o Projecto Macalinda. Trata-se de um projecto apoiado pela Embaixada da Noruega, com sede na Casa de Vidro, que funciona como um centro de interpretação ambiental e que inclui  uma sala de inclusão, onde se recebem actualmente mais de 100 crianças e jovens, beneficiários de refeições solidárias e de aulas extra curriculares, uma biblioteca, uma estufa (com mudas de mangal e outras plantas locais) ou as actividade do primeiro grupo cultural da Macaneta. O Macalinda intervém ainda em duas escolas locais e foi responsável pela construção de uma escola, com o apoio de Portugal, onde não havia nenhuma (na ilha de Mbenguelene, habitada por cerca de 600 pessoas) ou por ter construído uma colossal barreira de pneus para contenção das águas do Incomati.

Se o projecto Macalinda é a sua maior realização, Carlos Serra considera ainda que o seu maior feito é ter montado uma equipa de mulheres e de homens incríveis e de os ter visto crescer, assim como ter criado uma rede de amigos e de benfeitores (a um deles chama "alma caridosa", pelo que faz todas as semanas pela Cooperativa). E aos projectos já existentes, juntou recentemente a construção da Vila Liana, no meio da floresta da Macaneta, uma parceria com a sua mãe e onde investe parte do que ganha na consultoria e do que poupa do salário. A Vila Liana, uma peça que complementa o "puzzle" de Carlos Serra, é um projecto de turismo que terá, em 2026, 25 quartos, construídos à base de material local e de garrafas de vidro e cujas receitas se prevê serem aplicadas a favor das comunidades da Macaneta. Para já, foi inaugurado por lá o memorial Carlos Serra Sociólogo, em homenagem ao pai, que será também uma maneira de a mãe encontrar paz, de terminar o luto. Entretanto, como gosta de dizer, “A luta continua”, seja com a procura de novos parceiros ou com o estudo de novos meios de sustentabilidade.





Retrato feito a partir de uma conversa que teve lugar na Casa de Vidro, na Macaneta, a 29 de Março de 2025. É o décimo quarto de uma série sobre moçambicanos a ser publicada aqui no blogue.

Mais sobre a Casa de Vidro e o trabalho da Cooperativa de Educação Ambiental Repensar aqui e na página do Facebook.


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