A Ilha de Moçambique fez 200 anos e só Michelle Obama faltou à festa

Percorria a Rua dos Arcos, apreciando as coisas boas das várias bancas da feira gastronómica Tzoziva (e tzoziva em macua significa isso mesmo, coisas boas), quando Harry Potter, uma das personagens da Ilha e já personagem deste blogue (aqui) e de uma reportagem da RTP, transmitida em Janeiro deste ano, me lançou um "Essas festas estão a andar bem?".  As festas, que não podiam estar a correr melhor, eram as comemorações dos 200 anos da Ilha de Moçambique como cidade, que aconteceram sobretudo nos dias 15, 16 e 17 de Setembro último.
Eu cheguei a Omuhipiti, nome da Ilha na língua local, um pouco antes. E, antecipando uma invasão  no fim-de-semana, que esgotou todos os hotéis, casas de hóspedes, pensões e quartos em casas privadas, e um programa intenso de eventos (com a presença de ilhéus, continentais, visitantes e de muitas Excelências, com destaque para o Presidente da República Filipe Nyusi), aproveitei o primeiro dia para um passeio tranquilo pelas praias da contra costa (a precisarem de uma limpeza), pela cidade de macuti (com muitas crianças e algumas mulheres a quererem ficar no retrato e eu a prometer que um dia lhes hei-de fazer chegar as fotografias), pelo cemitério muçulmano (construído em 1845 e onde ainda hoje é visível o muro que antes separava as campas dos negros "indígenas" dos muçulmanos de ascendência indiana, árabe ou dos negros "assimilados"), pelo cemitério católico (como o anterior cheio de frangipânis mas mais ao abandono) e finalmente pela Rua da Solidariedade, já do outro lado e que passa pela mesquita grande ou principal e vai dar à praia dos pescadores. E foi aí que assisti à primeira inauguração, que nem sabia que ia acontecer.




















































Sempre acompanhada de um pequeno séquito de três rapazes, Adbul, Elio e Amido, os dois primeiros pequenos pintores e que eu já conhecia da segunda visita à Ilha (e Elio a dizer-me que gostou de ler as aventuras de Geronimo Stilton na "Ratolândia", que lhe ofereci na altura), vejo uma grande multidão à volta de cinco barcos acabados de fazer e engalanados com bandeiras da CIMO Comunidade Islâmica de Moçambique. Em conversa com um dos presentes, fico a saber que se trata dos primeiros cinco (o Mar Azul, o Diana...) de 18 barcos que vão ser entregues aos pescadores para substituírem o mesmo número de embarcações destruídas pela grande tempestade de ventos fortes e chuvas torrenciais de Janeiro deste ano (os restantes ainda estão em construção). Acabo por ser convidada para a cerimónia ("Só estamos à espera do senhor Governador [da província de Nampula]", diz-me o meu interlocutor) e aceito.
Por ali fiquei, vestida com uns calções e calçada com umas havaianas, no meio de uma plateia quase só de homens muçulmanos, primeiro meio embalada pelo imenso calor e pela leitura de algumas partes do Alcorão e depois atenta aos vários discursos (do presidente da CIMO, Mulane Abdul Rachid, do Governador Victor Borges, ou do PCA da Vodacom, Salimo Abdula, principal patrocinador desta iniciativa). Todos eles destacando a necessidade de devolver aos pescadores, que se encontravam numa "situação deplorável", "sem eira nem beira", os meios para continuarem a pescar. No final, e a lembrar que estamos na Ilha, houve uma actuação de um grupo de dança tradicional tufo, com as mulheres vestidas de capulanas verdes e laranja.
























E a festa continuou com mais tufo, muita música (e Mr. Bow foi uma das estrela de um concerto ao ar livre) e mais inaugurações. Dentro da Fortaleza de São Sebastião cortaram-se as fitas do Centro de Estudos Culturais e Religiosos do Oceano Índico, um projecto da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UniLúrio, e do Centro de Arqueologia, Investigação e de Recursos da Ilha de Moçambique, que tenta localizar e preservar os restos de navios que afundaram por perto e que conta com o apoio financeiro dos EUA. No edifício da antiga farmácia, durante muito tempo em ruínas, o BCI – Banco Comercial e de Investimentos inaugurou uma nova agência, uma sala de exposições e de conferências e uma Mediateca aberta à população. Na Avenida dos Continuadores, o hotel Villa Sands abriu uma galeria de arte, a Villa Sands Gallery, na presença de uma emocionada Gisela Antman (gerente e co-proprietária do Villa Sands) e de mamã Fátima, que em 1967 cantou na inauguração da ponte que liga a Ilha ao continente e juntou agora as melhores vozes para interpretarem o mesmo hino.
Houve também nestas comemorações dos 200 anos, no antigo edifício da Alfândega, recuperado e mesmo à beira mar, um cocktail de reabertura de uma exposição de fotografias de Moira Forjaz e de esculturas de Pekiwa. E eu, que já fotografei uma boa parte dos miúdos da Ilha, fiquei encantada com os retratos que Moira fez aos habitantes mais velhos: Ali Mussage, sentado com um boné na mão e uma criança por perto, morreu em 2017 com 89 anos, Adbdala Amisse, com um cofió na cabeça, tem 85 anos, Atija Rajabo Ali, uma mulher que tapa a cara com uma das mãos, terá mais de 94. E saber a idade ou a idade certa nem sempre é fácil: ainda nessa manhã me tinha cruzado com uma menina de ar doce,  que não faz ideia de quantos anos que tem.




















O mar à volta da Ilha e as ilhas mais pequenas em redor são uma tentação. Dediquei-lhes por isso grande parte de dois dos dias da estadia (e num dos seguintes aproveitei o Pontão para um último banho de mar). A ilha de Goa, que indicava a rota para a Índia aos navios que por ali passavam, e o seu farol de 1870 e ainda em funcionamento, tinham de ser visitados. E aproveitada a vista lá de cima. O que fiz na companhia de Dinho, marinheiro e mergulhador, e de Julinho (nome "de casa", que o "de cédula" é Ajuli) e Nuhy, os dois já amigos de outras visitas e protagonistas de uma reportagem publicada na revista Visão em Fevereiro de 2018 – onde foram considerados "crianças com uma ginga fora do normal".
Julinho, 14 anos, a frequentar a décima classe e guia turístico enquanto não se torna arquitecto, e Nuhy, 15 anos, na oitava classe, vendedor de uns bolinhos que se chamam gulamo jam e que também tem o sonho de ser arquitecto (e ainda Elio, Abdul, Abdala, ou Jacinto), são alguns dos meninos do Páteo d' Arte, que Maria Helena Perestrelo ensinou a pintar (e que vendem os desenhos que fazem aos visitantes). Foi a pedido dela, que agora está por Maputo e toma conta deles à distância, que juntei 12 miúdos para um jantar de pizzas no Âncora d' Ouro, uma forma de comemorarem os 200 anos da Ilha (e entretanto o bar e restaurante está à venda, por a dona, Eva, em Moçambique desde 2003, se preparar para voltar à Suécia).




































O terceiro dia foi um dia abençoado. Os donos do Feitoria Boutique Hotel (os amigos Mário e Ângela, que nos acolheram de novo no quarto Açafrão) fizeram-se ao mar e eu fui com eles. O objectivo da jornada era ver baleias, que passam por ali na altura em que as águas estão mais frescas. E elas apareceram com fartura, apesar da temporada estar um pouco no limite e de a água já estar quente. Vimos primeiro algumas ao longe, depois outras e mais outras e quase no final algumas mais perto do barco. Mas mesmo assim, a lente de 300 milímetros a fazer falta.






















Nunca tinha estado tanto tempo na Ilha, pelo que entre as idas ao mar e os compromissos festivos consegui visitar de novo a Fortaleza e o Museu (neste, com um guia só para nós, pois estava vazio num dia de tão grande enchente), conhecer novos ilhéus (a bebé Ilda ao colo da sua mãe, Mussaja Fakira, secretário do bairro do Museu e também mestre alfaiate, a quem encomendei uns arranjos de costura, Mussa Razao, com quem fiquei à conversa sobre a rádio comunitária On' Hipiti, de que é voluntário), regressar à matapa de siri siri do Bar da Sara e fazer uma excelente descoberta gastronómica, a barraca da Saquina. Só por si uma boa razão para voltar.
Por agora, regresso a casa a pensar no futuro deste espaço tão exíguo e ao mesmo tempo tão grandioso e decadente (embora cada vez  mais edifícios da cidade de pedra e cal estejam a ser recuperados) e a prosseguir com a leitura de Ilha de Moçambique Uma Herança Ambígua, de Séverine Cachat, lançado uns dias antes na capital. Disse-me na altura a autora que a festa dos 200 anos seria uma coisa em grande, que teria até a presença, segundo uma fonte de confiança, de Michelle Obama, rumor que eu também já tinha ouvido. Michelle não chegou a estar presente, mas a festa não deixou de ser enorme. 


























A feira de gastronomia Tzoziva, que vai na 17ª edição, é uma iniciativa da Apetur – Associação de Pequenos Empresários de Hotelaria e Turismo da Ilha de Moçambique. Mais informações sobre datas futuras com apetur.ilha@gmail.com.

O novo Centro de Arqueologia, Investigação e de Recursos da Ilha de Moçambique, que conta a história dos naufrágios que acontecerem por ali e do trabalho desenvolvimento para preservar esta parte da História, está aberto todos os dias das 9h às 16h. Tenha-se a sorte de encontrar por lá Yolanda Teixeira Duarte, investigadora e colaboradora da Universidade Eduardo Mondlane e da Universidade George Washington, nos EUA, e o interesse da visita é garantido.

Há várias empresas e particulares que alugam barcos para passeios de um dia. Desta vez, seguimos viagem com Dinho (de Eduardo), marinheiro e mergulhador. Não confundir com o seu xará Dinho (de Momade), que também presta os mesmos serviços. Informações sobre preços e reservas através do telefone 845949169 para o primeiro (uma viagem para 12 em dois barcos custou 12000 meticais), através de dinhodailha@yahoo.com.br para o segundo. Este tem dois barcos de fibra para dez pessoas cada e cobra 7000 meticais por passeio.

As reservas para o Bar Restaurante Saquina, que tem lagostas grelhadas, camarões grelhados ou fritos, galinha fumada, arroz de coco, matapa e outras coisas muito boas, podem ser feitas para o número 843697971. Ou então é aparecer por lá (fica junto à Fortaleza, do lado direito, mesmo sobre a praia). A construção, em canas, é recente pois a anterior ficou destruída com o último temporal. E também as loiças e todo o mobiliário.

O livro Ilha de Moçambique Uma Herança Ambígua (Alcance Editores), de Séverine Cachat, é a tese de doutoramento em antropologia social e cultural apresentada pela autora na Universidade de Reunião em 2009 e que resultou de um trabalho de campo desenvolvido entre 2002 e 2005. 


Comentários

  1. Foi muito bom ter visto esta reportagem sobre a nossa querida Ilha. Que se continue a desenvolver para que os seus habitantes possa ter um melhor futuro. Obrigado

    ResponderEliminar
  2. Fico feliz por ter gostado. Só é pena não ficar a saber o seu nome.

    ResponderEliminar
  3. Foi bom ter visto a sua reportagem sobre a ilha onde nasci e de que tenho imensas saudades.Que se continue a fazer coisas boas pelos ilheus e pela terra maravilhosa.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares