Namíbia: um país onde até os carros velhos são fotogénicos
Os navegadores portugueses que por ali atracaram nos finais do século XV chamaram à Costa dos Esqueletos, uma zona extremamente árida, de nevoeiros densos e ventos fortes e onde abundam os navios naufragados e os destroços de baleias e lobos-marinhos, Areias do Inferno. Tivessem chegado à Namíbia no século XXI, e viajado por terra, e talvez chamassem infernais às estradas capazes de triturar uma boa parte dos pneus que por lá passam ou de fazer capotar até um carro habituado aos trilhos de África. E que em Agosto de 2016 saiu sem um arranhão de uma viagem de quase 5000 quilómetros pelo Botswana e países vizinhos.
Para este último mês de Agosto o plano era ainda mais ambicioso, pelo menos em número de quilómetros, que acabaram por ser 7293, percorridos em 18 dias: alcançar, saindo de Maputo e via África do Sul, o sul da Namíbia, percorrer grande parte do país e voltar a casa via Botswana e novamente África do Sul. E ao quinto dia de viagem, quando seguíamos na C27, a caminho de Sesriem, as coisas podiam ter ficado por ali. Já sabia que a Namíbia tem mais estradas em terra batida do que asfaltadas (e fiquei a saber que as máquinas de as alisar que vamos encontrando não chegam para as tornar a todas mais transitáveis) e que o país ocupa habitualmente o primeiro lugar ou os lugares cimeiros nos rankings de acidentes rodoviários e de mortes nas estradas no mundo. Mas não estava preparada para ver o nosso 4x4 de rodas para o ar, depois de um pneu ter sido esfrangalhado pelas pedras soltas que pavimentavam o caminho.
Na ausência de rede telefónica, valeu-nos uma família de turistas, que não demorou muito a passar por ali – o que podia não ter acontecido, pois é possível viajar durante horas sem ver ninguém. Com a ajuda do seu carro, mais de um bendito cabo levado de Portugal e de uns empurrões sincronizados, o jipe voltou ao lugar de onde nunca devia ter saído. E nós, intactos e com um carro danificado mas funcional depois de lhe mudarmos o pneu, seguimos viagem, passando entretanto pela polícia, para dar conta da ocorrência. O nosso foi um dos três acidentes registados nesse dia naquela zona, mas nas instalações da polícia só nos cruzámos com três italianos a pagar uma multa de 2400 dólares namibianos (cerca de 145 euros, o câmbio é equivalente ao rand sul-africano), por terem conduzido fora de estrada e por terem usado um drone, sem cumprir as regras, numa zona de reserva.
Viajar pela Namíbia é duro e impróprio para gente alérgica ao pó, mas o mau estado de algumas estradas e as longas distâncias a percorrer são altamente compensadas pela beleza e fotogenia das paisagens. O país tem o maior canyon de África e um dos maiores do mundo, algumas das dunas mais altas, com 300 e tal ou quase 400 metros, o deserto mais antigo, uma reserva que tem uma vida selvagem abundante e uma planície seca e salgada tão grande e tão branca que consegue ser vista do espaço (ou pelo menos assim garante o site dedicado ao Etosha) e talvez o céu mais estrelado e os pores-do-sol mais inesquecíveis. E ainda um vale de árvores mortas que apetece ficar a fotografar para todo o sempre.
O Fish River Canyon, no sul, na quase despovoada região de Karas (dos dois milhões e tal de habitantes que tem a Namíbia poucos são os que habitam por ali), foi o primeiro lugar deste self-drive safari que tinha de ser visto. Já o conhecia por causa do África Acima, de Gonçalo Cadilhe, que caminhou durante seis dias pelo interior desta "abissal fenda na superfície da Terra". Sem cumprir nenhum dos três requisitos necessários – ter uma licença passada pelo Ministério do Ambiente da Namíbia, ter um atestado médico que comprove o bom estado físico e estar incluído num grupo de pelo menos três pessoas –, o que o levou a concluir que "Em África, há sempre o lado humano de qualquer decisão inflexível".
Nós ficámos apenas lá por cima, a admirar o enorme desfiladeiro a partir do Main Viewpoint, de onde se vê a famosa curva Hell's Bend, e depois ao longo do percurso que vai daí até Ai-Ais (a cerca de 70 quilómetros e onde há um restaurante, alojamento e piscinas termais para relaxar). Mas antes, ainda chegámos a tempo ao Hilker's Viewpoint para assistir à partida de três homens muito carregados, um deles com uma panela presa à mochila.
Quem se aventura a percorrer o leito do rio, onde não há qualquer estrutura de apoio, refúgio ou sinal no telemóvel e onde há apenas uma saída de emergência (perto de Palm Spings, depois de uns três dias de caminhada, mas com saída para o deserto...), tem de o fazer ao longo de 86 quilómetros, levando tudo o que precisa para sobreviver. O canyon tem no total 160 quilómetros de comprimento, 27 de largura máxima, 550 metros de profundidade e alguns acidentes fatais no currículo.
As famosas dunas vermelhas de Sossusvlei, que fazem parte do Namib Sand Sea, classificado como Património Mundial pela UNESCO em 2013, foram a paragem seguinte nesta viagem estrada fora. São elas a atracção maior da Namíbia e uma vez lá percebe-se porquê. Fazem parte do deserto mais antigo do mundo, o do Namibe, que tem mais de 55 milhões de anos, e da imensa área de conservação Namib Naukluft National Park e são absolutamente maravilhosas. Têm ainda por perto um desfiladeiro pequenino, o Sesriem Canyon, que pode ser percorrido por quem não teve tempo, energia ou coragem para percorrer o Fish River.
Sossusvlei e também Deadvlei, um vale de árvores petrificadas com mais de 900 anos, rodeado de dunas (a maior, a Big Daddy, pode ser escalada mas não é para todas as pernas) e de um céu muito azul, são acessíveis por Sesriem, onde fica a porta do parque. Até à duna 45 percorrem-se 45 quilómetros (daí o nome), até ao estacionamento de onde partem os transfers 4x4 para Deadvlei são mais 15, depois mais cinco até ao segundo estacionamento (também é possível seguir viagem a pé ou em carro próprio, mas o piso é de areia solta) e para terminar mais um a pé (que com o calor podem parecer dois ou três). E no fim, um sítio cuja paisagem não parece ser deste mundo.
A visita a Sossusvlei requer tempo, mesmo para quem não precisa de o gastar a comprar pneus novos (e a venda de pneus parece ser um negócio lucrativo na Namíbia) ou a cumprir burocracias na esquadra mais próxima. Estas dunas não podem ser vistas a correr. E devem ser, para além de escaladas (há quem o faça de madrugada ou ao final do dia para ver o nascer e o pôr-do-sol, mas para isso é preciso pernoitar dentro do parque), vistas de cima. Tal pode ser feito em balão de ar quente, assim haja dólares namibianos para investir (o equivalente a cerca de 500 euros), ou de helicóptero. Optámos pela segunda alternativa (e sem portas, para melhor fotografar) e demos por bem empregue o investimento. E sobretudo ficámos felizes por não termos sido levados pelo vento.
Também ficámos felizes no final da etapa seguinte, que nos levou de Sesriem até Walvis Bay, com passagem pelo Trópico de Capricórnio e por Solitaire, uma pequena povoação colocada no mapa pelos carros abandonados (também há por lá uma espécie de cemitério de jantes) e pelas tartes de maçã. Se percorrer a C27 no dia anterior não correu bem, a demorada viagem pelas C19 e C14, cheias de pedras, de curvas e quase desertas de carros, só não correu mal seguramente com a ajuda dos santos protectores dos viajantes aflitos. Safou-se a paisagem, montanhosa e marcada pela presença de mais um desfiladeiro, o Kuiseb Canyon, e um jantar tardio no The Raft, finalmente de peixe e marisco, depois de muito frango para não comer impala, zebra ou kudu.
A tranquila Walvis Bay e Swakopmund, a cerca de 40 quilómetros, são cidades localizadas à beira de um gelado Atlântico e construídas no deserto, o que lhes dá um toque especial. A primeira, habitada por uma colónia de flamingos, é o ponto de partida para passeios vários pelas dunas (de 4x4 ou a cavalo) e de barco (para ver golfinhos, baleias ou pelicanos). A segunda tem uma arquitectura herdada dos tempos da colonização alemã, uma feira de artesanato perto do mar, algumas lojas onde vale a pena entrar (numa deliciosa livraria em frente à Art Africa comprei o pequeno guia que nos havia de guiar no Etosha), uma galeria de cristais e pedras preciosas, a Kristall Galerie, e um restaurante no final do pontão, o Jetty 1905, que tem uma boa vista, sushi, ostras ou mexilhões na ementa. Em Swakop, assim lhe chamam os moradores, muitos deles alemães ou descendentes de alemães, não se espante o visitante se encontrar um original sinal de trânsito (de perigo) com uma galinha-do-mato desenhada.
Mais para norte, rumo à célebre Costa dos Esqueletos (nome dado a toda a área que vai de Swakopmund até à fronteira com Angola, sendo que o Skeleton Coast Park só começa em Torra Bay), a haver sinais de perigo seriam estes sobre a possibilidade de morrer torrado pelo sol, de ficar atolado para sempre ou de naufragar no caso dos navios.
Mesmo assim, seguimos pela C34, uma estrada de areia e sal que figura no site dedicado às estradas mais perigosas, em busca dos navios encalhados e ao encontro da colónia de lobos-marinhos de Cape Cross – onde a História se escreve em português, mesmo ao lado de uma réplica de um padrão original: "[Em 1485] o excelente e esclarecido rei Dom João II de Portugal mandou descobrir esta terra e colocar este padrão por Diogo Cão".
Os lobos-marinhos estavam por lá, aos milhares, exalando um cheiro proporcional à quantidade. E que permanece na roupa, nos cabelos, na pele, mesmo quando já se está a quilómetros de Cape Cross ("Que asco!", diz, quase a sucumbir, uma jovem turista, talvez espanhola). Quanto aos navios, apesar do GPS indicar um naufragado em 1903 e outro em 1955, só conseguimos ver o Zeila, que se afundou em 2008. Na praia onde se encontra, depois da milha 30 e antes de Henties Bay, mais uma cidadezinha à beira mar, há outros visitantes de passagem e uma meia dúzia de vendedores de pedras, todos com grossos gorros de lã na cabeça. Ali por perto, muitos homens a pescar, talvez por ser sábado e por haver na zona, vejo mais tarde no mapa, mais de três dezenas de "famous fishing spots": Milha 63, Milha 72, Kastele ou Popeye. Entretanto, leio na Wikipédia que Bartolomeu Dias, que por ali navegou em 1488, encontrou tal abundância de peixe que chamou a esta costa Praia das Sardinhas.
Deixámos a costa atlântica, onde só molhei um pé, e rumámos para o interior, percorrendo a deserta C35, que ganha o título de estrada com maior número de pneus abandonados no mundo. O objectivo era chegar ao final da tarde a Kamanjab, fazendo um desvio no caminho para conhecer os Organ Pipes, uma curiosa formação rochosa, e as gravuras rupestres de Twyfelfontein, que têm mais ou menos 2000 anos e são cerca de 2500 (e Património da UNESCO desde 2007). Só podem ser visitadas na companhia de um guia e a nós calhou-nos Martin ("Martin, like Luther King"), que nos foi mostrando as girafas (símbolo de água e chuva, por estarem mais perto do céu), os rinocerontes, as avestruzes, um pinguim (o que significa que os bosquímanos tinham ido ao mar) e o que se julga ser a única figura humana gravada naquelas rochas.
Mas antes das gravuras, que valem os solavancos na D612 (o guarda do estacionamento, Nico, chamou-lhes "African massage"), fica para a história desta viagem um encontro com uma família que vende minerais à beira da estrada (quartzo, ametista, fluorite ou lapiz lazuli): Usiel, 26 anos, sem filhos e com três sobrinhos, diz-me, a sorrir, que vai buscar água de burro a Uis, a 14 quilómetros de casa; Herolinda Urikhos, 12 anos, estudante da 4ª classe, pede-me que lhe tire uma foto e que lha envie para um apartado que me entrega escrito num papelinho; e Claudine !Gooses, um pouco mais nova, gostava de receber uns doces como presente. Os três falam um pouco de inglês mas falam sobretudo a língua da etnia Damara, sendo que o ! no apelido de Claudine corresponde aos estalos que dão com a língua.
Num dia muito fértil em encontros, o que é de assinalar numa Namíbia pouco habitada, cruzo-me também com uma carroça com três homens puxada por quatro burros, dois turistas com malas penduradas na roda da frente das bicicletas, um rapaz que pede água mostrando um garrafão vazio e mais um condutor de mais uma máquina de alisar estradas. E ainda, qual miragem depois de vários dias no deserto, com um grupo de mulheres vestidas com longos vestidos coloridos e uns originais chapéus e a rodopiar por ali para os viajantes que passam. Soube mais tarde que eram mulheres Herero, que vendem alguns objectos feitos em pano e umas bonecas que se vestem como quem as costura.
Ao oitavo dia na Namíbia, quando nos preparávamos para visitar a aldeia Himba perto de Kamanjab e depois disso dar início a uma maratona de três dias no Etosha, seguimos viagem com um Portugal desenhado no pó e no sal do carro pelo companheiro de viagem mais jovem e com um I Love Nam acrescentado por alguém na bomba de gasolina. Mas que também podia ter sido escrito por nós. Nessa altura, já estávamos conquistados.
Viajar pela Namíbia em carro próprio ou alugado (quase sempre um 4x4, a maior parte com tenda acoplada) requer um bom planeamento: é preciso fazer bem o trabalho de casa, ler os relatos de quem já foi, calcular bem as etapas a fazer em cada dia, dando uma margem para os imprevistos, viajar sempre com dois pneus suplentes e reservar previamente o alojamento pelo menos nos sítios com mais procura. É o caso de Sossuvlei e do Etosha, onde tudo esgota cedo.
Muitos viajantes optam por percorrer a Namíbia (ou Namíbia e países à volta) em overland, seguindo em pequenos camiões e na companhia de um grupo organizado. A Nomad, o operador que mais fomos encontrando ao longo desta viagem, tem programas de 12 dias com partida de Cape Town, na África do Sul, a 18760 rands (Best of Namibia North), 23450 (Best of Namibia South) e 29950 (Best of Namibia Luxury), o que equivale mais ou menos a 1200, 1400 e 1800 euros.
Grunau (Vastrap Guest Farm), Bethanie (Bethanie Guest House), Sossusvlei (Sossusvlei Lodge), Walvis Bay (1932 House Bed and Breakfast), Swakopmund (Madhi Cottage), Henties Bay (Desert Rendez Vous), Kamanjad, (Melissa's Guest House), Okaukuejo, à porta do Etosha (Toshari Lodge), Omuthiya, a norte do Etosha (City Lodge Boutique Hotel), Tsumed (Tsumed Backpackers), Waterberg (Waterberg Wilderness), Otjozondjupa (Von Bach Dam Resort) e Windhoek (Faanbergh Accomodation) foram os sítios escolhidos para dormir. A noite mais barata, com pequeno almoço incluído, custou 850 dólares para três (o equivalente a 55 euros) e a mais cara, sem outra opção disponível por perto, 7484 (o equivalente a 448 euros), com jantar (e muita carne de caça no buffet e um dos empregados a perguntar por Ronaldo) e pequeno almoço.
Os bilhetes de entrada em todos os parques, Etosha incluído, custam 80 dólares por pessoa (menos de 5 euros) e o carro 10. Moçambicanos ou residentes em Moçambique pagam 40.
As autorizações para caminhar no leito do Fish River, actividade apenas permitida de Maio a Setembro, devem ser tratadas com o Namibia Wildlife Resorts.
Os voos de helicóptero panorâmicos em Sossusvlei podem ser contratados no Sossusvlei Lodge (adventures@sossusvleilodge.com). Há quatro rotas disponíveis, com duração entre 30 minutos e uma hora e meia. Os preços vão de 2693 dólares por pessoa para dois passageiros (ou 1795 por pessoa se forem três) a 8080 (ou 5385 se forem três). A rota 2 vai até à Duna 45, a 4 até à Costa dos Esqueletos.
Mais sobre a viagem à Namíbia aqui (visita à aldeia Himba de Otjikandero), aqui (safari no Etosha) e aqui (Windhoek)
Para este último mês de Agosto o plano era ainda mais ambicioso, pelo menos em número de quilómetros, que acabaram por ser 7293, percorridos em 18 dias: alcançar, saindo de Maputo e via África do Sul, o sul da Namíbia, percorrer grande parte do país e voltar a casa via Botswana e novamente África do Sul. E ao quinto dia de viagem, quando seguíamos na C27, a caminho de Sesriem, as coisas podiam ter ficado por ali. Já sabia que a Namíbia tem mais estradas em terra batida do que asfaltadas (e fiquei a saber que as máquinas de as alisar que vamos encontrando não chegam para as tornar a todas mais transitáveis) e que o país ocupa habitualmente o primeiro lugar ou os lugares cimeiros nos rankings de acidentes rodoviários e de mortes nas estradas no mundo. Mas não estava preparada para ver o nosso 4x4 de rodas para o ar, depois de um pneu ter sido esfrangalhado pelas pedras soltas que pavimentavam o caminho.
Na ausência de rede telefónica, valeu-nos uma família de turistas, que não demorou muito a passar por ali – o que podia não ter acontecido, pois é possível viajar durante horas sem ver ninguém. Com a ajuda do seu carro, mais de um bendito cabo levado de Portugal e de uns empurrões sincronizados, o jipe voltou ao lugar de onde nunca devia ter saído. E nós, intactos e com um carro danificado mas funcional depois de lhe mudarmos o pneu, seguimos viagem, passando entretanto pela polícia, para dar conta da ocorrência. O nosso foi um dos três acidentes registados nesse dia naquela zona, mas nas instalações da polícia só nos cruzámos com três italianos a pagar uma multa de 2400 dólares namibianos (cerca de 145 euros, o câmbio é equivalente ao rand sul-africano), por terem conduzido fora de estrada e por terem usado um drone, sem cumprir as regras, numa zona de reserva.
Viajar pela Namíbia é duro e impróprio para gente alérgica ao pó, mas o mau estado de algumas estradas e as longas distâncias a percorrer são altamente compensadas pela beleza e fotogenia das paisagens. O país tem o maior canyon de África e um dos maiores do mundo, algumas das dunas mais altas, com 300 e tal ou quase 400 metros, o deserto mais antigo, uma reserva que tem uma vida selvagem abundante e uma planície seca e salgada tão grande e tão branca que consegue ser vista do espaço (ou pelo menos assim garante o site dedicado ao Etosha) e talvez o céu mais estrelado e os pores-do-sol mais inesquecíveis. E ainda um vale de árvores mortas que apetece ficar a fotografar para todo o sempre.
O Fish River Canyon, no sul, na quase despovoada região de Karas (dos dois milhões e tal de habitantes que tem a Namíbia poucos são os que habitam por ali), foi o primeiro lugar deste self-drive safari que tinha de ser visto. Já o conhecia por causa do África Acima, de Gonçalo Cadilhe, que caminhou durante seis dias pelo interior desta "abissal fenda na superfície da Terra". Sem cumprir nenhum dos três requisitos necessários – ter uma licença passada pelo Ministério do Ambiente da Namíbia, ter um atestado médico que comprove o bom estado físico e estar incluído num grupo de pelo menos três pessoas –, o que o levou a concluir que "Em África, há sempre o lado humano de qualquer decisão inflexível".
Nós ficámos apenas lá por cima, a admirar o enorme desfiladeiro a partir do Main Viewpoint, de onde se vê a famosa curva Hell's Bend, e depois ao longo do percurso que vai daí até Ai-Ais (a cerca de 70 quilómetros e onde há um restaurante, alojamento e piscinas termais para relaxar). Mas antes, ainda chegámos a tempo ao Hilker's Viewpoint para assistir à partida de três homens muito carregados, um deles com uma panela presa à mochila.
Quem se aventura a percorrer o leito do rio, onde não há qualquer estrutura de apoio, refúgio ou sinal no telemóvel e onde há apenas uma saída de emergência (perto de Palm Spings, depois de uns três dias de caminhada, mas com saída para o deserto...), tem de o fazer ao longo de 86 quilómetros, levando tudo o que precisa para sobreviver. O canyon tem no total 160 quilómetros de comprimento, 27 de largura máxima, 550 metros de profundidade e alguns acidentes fatais no currículo.
As famosas dunas vermelhas de Sossusvlei, que fazem parte do Namib Sand Sea, classificado como Património Mundial pela UNESCO em 2013, foram a paragem seguinte nesta viagem estrada fora. São elas a atracção maior da Namíbia e uma vez lá percebe-se porquê. Fazem parte do deserto mais antigo do mundo, o do Namibe, que tem mais de 55 milhões de anos, e da imensa área de conservação Namib Naukluft National Park e são absolutamente maravilhosas. Têm ainda por perto um desfiladeiro pequenino, o Sesriem Canyon, que pode ser percorrido por quem não teve tempo, energia ou coragem para percorrer o Fish River.
Sossusvlei e também Deadvlei, um vale de árvores petrificadas com mais de 900 anos, rodeado de dunas (a maior, a Big Daddy, pode ser escalada mas não é para todas as pernas) e de um céu muito azul, são acessíveis por Sesriem, onde fica a porta do parque. Até à duna 45 percorrem-se 45 quilómetros (daí o nome), até ao estacionamento de onde partem os transfers 4x4 para Deadvlei são mais 15, depois mais cinco até ao segundo estacionamento (também é possível seguir viagem a pé ou em carro próprio, mas o piso é de areia solta) e para terminar mais um a pé (que com o calor podem parecer dois ou três). E no fim, um sítio cuja paisagem não parece ser deste mundo.
A visita a Sossusvlei requer tempo, mesmo para quem não precisa de o gastar a comprar pneus novos (e a venda de pneus parece ser um negócio lucrativo na Namíbia) ou a cumprir burocracias na esquadra mais próxima. Estas dunas não podem ser vistas a correr. E devem ser, para além de escaladas (há quem o faça de madrugada ou ao final do dia para ver o nascer e o pôr-do-sol, mas para isso é preciso pernoitar dentro do parque), vistas de cima. Tal pode ser feito em balão de ar quente, assim haja dólares namibianos para investir (o equivalente a cerca de 500 euros), ou de helicóptero. Optámos pela segunda alternativa (e sem portas, para melhor fotografar) e demos por bem empregue o investimento. E sobretudo ficámos felizes por não termos sido levados pelo vento.
A tranquila Walvis Bay e Swakopmund, a cerca de 40 quilómetros, são cidades localizadas à beira de um gelado Atlântico e construídas no deserto, o que lhes dá um toque especial. A primeira, habitada por uma colónia de flamingos, é o ponto de partida para passeios vários pelas dunas (de 4x4 ou a cavalo) e de barco (para ver golfinhos, baleias ou pelicanos). A segunda tem uma arquitectura herdada dos tempos da colonização alemã, uma feira de artesanato perto do mar, algumas lojas onde vale a pena entrar (numa deliciosa livraria em frente à Art Africa comprei o pequeno guia que nos havia de guiar no Etosha), uma galeria de cristais e pedras preciosas, a Kristall Galerie, e um restaurante no final do pontão, o Jetty 1905, que tem uma boa vista, sushi, ostras ou mexilhões na ementa. Em Swakop, assim lhe chamam os moradores, muitos deles alemães ou descendentes de alemães, não se espante o visitante se encontrar um original sinal de trânsito (de perigo) com uma galinha-do-mato desenhada.
Mais para norte, rumo à célebre Costa dos Esqueletos (nome dado a toda a área que vai de Swakopmund até à fronteira com Angola, sendo que o Skeleton Coast Park só começa em Torra Bay), a haver sinais de perigo seriam estes sobre a possibilidade de morrer torrado pelo sol, de ficar atolado para sempre ou de naufragar no caso dos navios.
Mesmo assim, seguimos pela C34, uma estrada de areia e sal que figura no site dedicado às estradas mais perigosas, em busca dos navios encalhados e ao encontro da colónia de lobos-marinhos de Cape Cross – onde a História se escreve em português, mesmo ao lado de uma réplica de um padrão original: "[Em 1485] o excelente e esclarecido rei Dom João II de Portugal mandou descobrir esta terra e colocar este padrão por Diogo Cão".
Os lobos-marinhos estavam por lá, aos milhares, exalando um cheiro proporcional à quantidade. E que permanece na roupa, nos cabelos, na pele, mesmo quando já se está a quilómetros de Cape Cross ("Que asco!", diz, quase a sucumbir, uma jovem turista, talvez espanhola). Quanto aos navios, apesar do GPS indicar um naufragado em 1903 e outro em 1955, só conseguimos ver o Zeila, que se afundou em 2008. Na praia onde se encontra, depois da milha 30 e antes de Henties Bay, mais uma cidadezinha à beira mar, há outros visitantes de passagem e uma meia dúzia de vendedores de pedras, todos com grossos gorros de lã na cabeça. Ali por perto, muitos homens a pescar, talvez por ser sábado e por haver na zona, vejo mais tarde no mapa, mais de três dezenas de "famous fishing spots": Milha 63, Milha 72, Kastele ou Popeye. Entretanto, leio na Wikipédia que Bartolomeu Dias, que por ali navegou em 1488, encontrou tal abundância de peixe que chamou a esta costa Praia das Sardinhas.
Deixámos a costa atlântica, onde só molhei um pé, e rumámos para o interior, percorrendo a deserta C35, que ganha o título de estrada com maior número de pneus abandonados no mundo. O objectivo era chegar ao final da tarde a Kamanjab, fazendo um desvio no caminho para conhecer os Organ Pipes, uma curiosa formação rochosa, e as gravuras rupestres de Twyfelfontein, que têm mais ou menos 2000 anos e são cerca de 2500 (e Património da UNESCO desde 2007). Só podem ser visitadas na companhia de um guia e a nós calhou-nos Martin ("Martin, like Luther King"), que nos foi mostrando as girafas (símbolo de água e chuva, por estarem mais perto do céu), os rinocerontes, as avestruzes, um pinguim (o que significa que os bosquímanos tinham ido ao mar) e o que se julga ser a única figura humana gravada naquelas rochas.
Mas antes das gravuras, que valem os solavancos na D612 (o guarda do estacionamento, Nico, chamou-lhes "African massage"), fica para a história desta viagem um encontro com uma família que vende minerais à beira da estrada (quartzo, ametista, fluorite ou lapiz lazuli): Usiel, 26 anos, sem filhos e com três sobrinhos, diz-me, a sorrir, que vai buscar água de burro a Uis, a 14 quilómetros de casa; Herolinda Urikhos, 12 anos, estudante da 4ª classe, pede-me que lhe tire uma foto e que lha envie para um apartado que me entrega escrito num papelinho; e Claudine !Gooses, um pouco mais nova, gostava de receber uns doces como presente. Os três falam um pouco de inglês mas falam sobretudo a língua da etnia Damara, sendo que o ! no apelido de Claudine corresponde aos estalos que dão com a língua.
Num dia muito fértil em encontros, o que é de assinalar numa Namíbia pouco habitada, cruzo-me também com uma carroça com três homens puxada por quatro burros, dois turistas com malas penduradas na roda da frente das bicicletas, um rapaz que pede água mostrando um garrafão vazio e mais um condutor de mais uma máquina de alisar estradas. E ainda, qual miragem depois de vários dias no deserto, com um grupo de mulheres vestidas com longos vestidos coloridos e uns originais chapéus e a rodopiar por ali para os viajantes que passam. Soube mais tarde que eram mulheres Herero, que vendem alguns objectos feitos em pano e umas bonecas que se vestem como quem as costura.
Ao oitavo dia na Namíbia, quando nos preparávamos para visitar a aldeia Himba perto de Kamanjab e depois disso dar início a uma maratona de três dias no Etosha, seguimos viagem com um Portugal desenhado no pó e no sal do carro pelo companheiro de viagem mais jovem e com um I Love Nam acrescentado por alguém na bomba de gasolina. Mas que também podia ter sido escrito por nós. Nessa altura, já estávamos conquistados.
Viajar pela Namíbia em carro próprio ou alugado (quase sempre um 4x4, a maior parte com tenda acoplada) requer um bom planeamento: é preciso fazer bem o trabalho de casa, ler os relatos de quem já foi, calcular bem as etapas a fazer em cada dia, dando uma margem para os imprevistos, viajar sempre com dois pneus suplentes e reservar previamente o alojamento pelo menos nos sítios com mais procura. É o caso de Sossuvlei e do Etosha, onde tudo esgota cedo.
Muitos viajantes optam por percorrer a Namíbia (ou Namíbia e países à volta) em overland, seguindo em pequenos camiões e na companhia de um grupo organizado. A Nomad, o operador que mais fomos encontrando ao longo desta viagem, tem programas de 12 dias com partida de Cape Town, na África do Sul, a 18760 rands (Best of Namibia North), 23450 (Best of Namibia South) e 29950 (Best of Namibia Luxury), o que equivale mais ou menos a 1200, 1400 e 1800 euros.
Grunau (Vastrap Guest Farm), Bethanie (Bethanie Guest House), Sossusvlei (Sossusvlei Lodge), Walvis Bay (1932 House Bed and Breakfast), Swakopmund (Madhi Cottage), Henties Bay (Desert Rendez Vous), Kamanjad, (Melissa's Guest House), Okaukuejo, à porta do Etosha (Toshari Lodge), Omuthiya, a norte do Etosha (City Lodge Boutique Hotel), Tsumed (Tsumed Backpackers), Waterberg (Waterberg Wilderness), Otjozondjupa (Von Bach Dam Resort) e Windhoek (Faanbergh Accomodation) foram os sítios escolhidos para dormir. A noite mais barata, com pequeno almoço incluído, custou 850 dólares para três (o equivalente a 55 euros) e a mais cara, sem outra opção disponível por perto, 7484 (o equivalente a 448 euros), com jantar (e muita carne de caça no buffet e um dos empregados a perguntar por Ronaldo) e pequeno almoço.
Os bilhetes de entrada em todos os parques, Etosha incluído, custam 80 dólares por pessoa (menos de 5 euros) e o carro 10. Moçambicanos ou residentes em Moçambique pagam 40.
As autorizações para caminhar no leito do Fish River, actividade apenas permitida de Maio a Setembro, devem ser tratadas com o Namibia Wildlife Resorts.
Os voos de helicóptero panorâmicos em Sossusvlei podem ser contratados no Sossusvlei Lodge (adventures@sossusvleilodge.com). Há quatro rotas disponíveis, com duração entre 30 minutos e uma hora e meia. Os preços vão de 2693 dólares por pessoa para dois passageiros (ou 1795 por pessoa se forem três) a 8080 (ou 5385 se forem três). A rota 2 vai até à Duna 45, a 4 até à Costa dos Esqueletos.
Mais sobre a viagem à Namíbia aqui (visita à aldeia Himba de Otjikandero), aqui (safari no Etosha) e aqui (Windhoek)
Parabéns. Adorei o relato e as imagens.
ResponderEliminarObrigado. Nos próximos dias haverá mais impressões e fotografias sobre o resto da viagem aqui no blogue.
EliminarExcelente :)
ResponderEliminarObrigado. Fico feliz por ter gostado.
EliminarImpecável. Parabéns. As paisagens de Sossusvlei parecem, simplesmente, de um lugar inóspito.
ResponderEliminarObrigado. Sossusvlei é um lugar muito especial.
EliminarAdorei recordar estes lugares por onde já andei. Deu-me uma saudade... Acho q vou voltar em breve!
ResponderEliminarObrigado. Eu talvez volte também um dia.
EliminarObrigada, acabei agora a viagem pelas tuas palavras. Sou fá... já to disse ;) ?!?
ResponderEliminarJá sim. Mas é sempre bom saber que há desse lado quem me leia. E goste. Obrigado!
EliminarDescritiva exuberante. Fiz parte do mesmo percurso num simples utilitário e sozinho...e sem registro de problemas. Que sorte!! Aconselho mesmo os que tenham receios q visitem antes de morrer parte do mundo.
ResponderEliminarObrigado. O problema ficou para as histórias das viagens. E acabou em bem.
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