Baptismo de caravana: Alentejo, Algarve e um pouco de N2
Portugal assistiu no último Verão, altura de desconfinamento após os primeiros tempos de pandemia, a um invulgar aumento do número de autocaravanas a andar por aí, com algumas empresas de aluguer a verem os seus clientes aumentar em 250 por cento, noticiava o Público de 7 de Setembro. Nessa altura, ainda não tinham entrado em vigor as alterações ao Código da Estrada, que têm gerado descontentamento por parte dos autocaravanistas e até uma petição pela alteração do artigo 50-A, que desde 8 de Janeiro deste ano estabelece que é proibido o aparcamento e a pernoita de autocaravanas, em todo o território nacional, fora dos locais designados para o efeito, sendo estes as áreas de serviço para autocaravanas, os parques de campismo e os parques exclusivos para este tipo de viaturas. E nessa altura também ainda não tínhamos nós entrado nas estatísticas.
Era já início de Outono quando nos fizemos à estrada, três estreantes na condução de um veículo tamanho XL e que por muito pouco, uma questão de centímetros, não ficou encravado numa rua estreita perto do Miradouro do Alto da Arroteia, nos arredores de São Brás de Alportel. Eram os três viajantes estreantes ainda na escolha dos melhores locais para passar a noite, aproveitando a autonomia de um veículo deste género, e em outros assuntos mais delicados, como a manutenção da cassete do WC ou a gestão dos depósitos de água – em relação aos quais aprendemos rápido que se deve despejar sempre que possível o das águas sujas, sob pena da autocaravana ser invadida por um cheiro que não se quer como companheiro de viagem; e que, pelo sim, pelo não, se deve ir abastecendo sempre que possível o das águas limpas.
Percorrer os 738 quilómetros da Nacional 2, de Chaves a Faro, chegou a estar em cima da mesa como programa para a viagem. Mas os dias disponíveis, apenas seis, e a previsão de mau tempo para quase todo o país ditaram um regresso a Mértola e a Alcoutim, onde era suposto haver sol e onde já havíamos desconfinado uns dias durante o último mês de Agosto. Juntámos ainda à rota uma incursão pelo litoral do Algarve, de Castro Marim a Faro, e regresso a Lisboa por um pouco da N2.
Em Mértola, um espaço plano sobre o Guadiana, logo a seguir ao Hotel Museu, geralmente com caravanas estacionadas, tinha despertado a nossa atenção na visita anterior. E foi aí que decidimos passar a noite, depois de um bom regresso ao restaurante Casa Amarela, em Além Rio, e aos seus folhados de bacalhau. O despertar foi por ali animado por um galo a cantar, o barulho dos guizos de um bando de cabras e pelas vozes de meia dúzia de rapazes, que deram uns mergulhos no rio antes de seguirem para a escola.
Pequeno almoço tomado a bordo e seguimos nós para a Mina de São Domingos, com as ruínas da exploração encerrada nos anos 70 a pedir nova visita, a Praia da Albufeira da Tapada Grande nessa altura quase deserta, apenas três pessoas debaixo de um chapéu, e o cozido de grão da casa de pasto A Taberna, que aí se faz todos os dias, há 20 anos, apurado e económico como sempre (as meias doses custam 5 euros, as doses 7). E eu a perguntar ao dono onde compra grão tão bom e tão grande e ele a dizer-me que vem de Espanha, ali ao lado. Afinal, vêm os garbanzos do México, de Angostura, que fica no Estado de Sinaloa, terra de cartéis e violência, como se confirma na embalagem de 25 quilos que o sr. Sebastião nos traz à mesa.
E seguiu o passeio para a aldeia de Pomarão, terminal de uma das primeiras linhas férreas construídas em Portugal e antigo cais do minério, construído em 1859 pela empresa proprietária da Mina de São Domingos na margem esquerda do Guadiana, ali metade português, metade espanhol, e na confluência do rio Chança. Pomarão foi uma estreia para os três viajantes e por ali ficámos a gozar o sossego do lugar e a imaginar os tempos em que os navios à vela e a vapor partiam carregados para a CUF, no Barreiro, ou para Inglaterra, via Vila Real de Santo António. No antigo cais, muito degradado, um pescador apanhou um bardo grande, talvez a treinar para o Festival de Peixe do Rio, que ali se realizava anualmente, geralmente em Março ou Abril, em tempos pré Covid-19.
A vila de Alcoutim, onde estacionámos num terreno tranquilo junto à praia fluvial, fazendo companhia a uma caravana vinda da Alemanha e a outra com matrícula do Reino Unido, recebeu-nos na segunda noite. Antes, tratámos dos depósitos da casa ambulante numa área de apoio perto da escola e junto a casas de habitação (espaço animado pelo barulho de crianças a brincar e cães a ladrar) e jantámos as lulas do costume na esplanada do Sítio do Costume, com vista para o Guadiana.
E foi sempre junto ao Guadiana que seguimos pela panorâmica M507 abaixo, rumo a Castro Marim. Depois de uma visita ao Castelo, que tem boas vista para as salinas e para Vila Real de Santo António e que em 2020 não acolheu o habitual Festival Medieval (e a rapariga da bilheteira a dizer que todos ali sentiram a sua falta), houve almoço de sardinhas na Fábrica do Costa, as últimas do ano, com vista para a Ria Formosa. O caminho até lá foi feito a pé, pois uma autocaravana pode dar autonomia aos viajantes mas também algumas dores de cabeça, como quando se apanha um sinal de proibido pela frente. E onde estacionar uma coisa tão grande? No caso, ficou junto a uns viveiros de plantas, pouco antes da estrada interdita, por sugestão de uma turista, talvez inglesa, que passava.
O Algarve Motorhome Park em Tavira (há mais dois parques da mesma empresa, um em Silves e outro na Praia da Falésia), localizado no Vale do Caranguejo e com capacidade para 120 caravanas, foi o destino da terceira noite. E o único local de pernoita pago desta viagem, a preços que não arruínam ninguém: usar os serviços sem passar a noite custa 3 euros, uma noite com electricidade incluída custa 9,50 ou 10, conforme a altura do ano (o site indica a disponibilidade de cada parque).
Acho que também não nos arruinámos com os preços d' A Barquinha, onde jantámos, à beira do rio Gilão. Fomos recebidos por Júlia Figueiredo, de origem angolana e há quase 30 anos no restaurante (tem 11 irmãos, todos em Tavira, e uma das irmãs é a cozinheira de serviço), que nos serviu um bom bife de atum e algumas histórias da pesca deste pelos japoneses na Fuzeta, de alguns suecos que vão ao restaurante mais para beber do que para comer ou das festas feitas no Algarve pelo milionário da Playboy Hugh Hefner, que morreu em 2017, aos 91 anos.
Última noite, mais uma barragem, desta vez a de Montargil, tranquila ao final de tarde de um domingo e coberta de nevoeiro na manhã da partida. Foi a nossa última etapa na N2, que ao longo do dia nos deu a conhecer o Torrão, com alguns velhotes a apanhar sol perto do marco cheio de autocolantes com que alguns viajantes assinalam a passagem, Alcáçovas, com uma espreitadela ao Paço dos Henriques e ao Jardim das Conchinhas, fechados à hora do almoço, Ciborro, célebre por ter o marco dos 500 quilómetros para quem vem de Chaves, e Mora, com visita ao Fluviário, na Praia Fluvial do Gameiro. Percorridos cerca de 277 quilómetros na N2, ficaram a faltar 461. Talvez um dia destes os percorra. Talvez de carro e com tempo para ir parando, que a N2 não deve ser feita a correr.
Estava aqui com uma música de fundo e a ler este relato.
ResponderEliminarQue delícia de aventura!
E reletada com um sentimento para além do palpável.
Excelente.
Parabéns!
Obrigado. Foi mesmo uma boa aventura.
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