Viajar com livros: Luis Sepúlveda
O escritor Luis Sepúlveda (Ovalle, Chile, 4 de Outubro de 1949 – Oviedo, Espanha, 16 de Abril de 2020), morreu há um ano, vítima de Covid–19. E eu que tinha uma lacuna grande em relação à sua obra decidi nos últimos meses resolver o assunto. E viajar com ele, sem sair de casa. Sepúlveda, que se tornou num dos escritores de língua espanhola mais lidos, depois da publicação em França, em 1992, do romance Um Velho Que Lia Romances de Amor (em Espanha, a história de Antonio José Bolivar Proaño, que vivia num lugar remoto da Amazónia e que tinha como maiores bens a dentadura que guardava num lenço e os romances que o dentista Rubicundo lhe levava duas vezes por ano, foi publicada em 1989), tem todos os seus livros traduzidos para português, quase sempre obras com poucas páginas, nunca a chegar às 200. O autor gostava da "concisão", explicou em 2017 numa entrevista ao jornal i. E também de "contar histórias e agarrar o leitor na primeira palavra".
Em A Sombra do Que Fomos, romance de 2009, viaja o leitor até Santiago do Chile, que "não podia ser mais triste sob a chuva", e às recordações de três velhos já "lixados", antigos militantes de esquerda derrotados pelo golpe de Pinochet, que se encontram num armazém abandonado de um bairro popular passados 30 anos. Recordações que passam pelas prisões dos tempos da ditadura, os sorvedouros, pelo "campo de concentração" de Puchuncavi ("De onde, se te levam de noite, nunca mais apareces") ou pelos tempos passados no exílio, do qual não se regressa, seja este em Paris ou em Gotemburgo: "Qualquer intenção de o fazer é um engano, uma tentativa absurda de habitar um país guardado na memória."
O Últimas Notícias do Sul, um trabalho conjunto com Daniel Mordzinski, que Sepúlveda considerava "um dos melhores fotógrafos do mundo" (conhecido como "fotógrafo dos escritores"), nasceu como a crónica de uma viagem realizada por dois amigos e acabou a ser um "romance de uma região desaparecida": a Patagónia. Onde, no ano da viagem, 2011, aconteceu o que só acontece três vezes num século, o florescimento das flores vermelhas da quila, uma variedade muito resistente de bambu andino que cresce nos desfiladeiros profundos das cordilheiras e que os índios tehuelches usavam para calcular a sua idade. Ou onde os dois viajantes se juntaram a Tano, um homem que tentava encontrar um "violino" no meio da espete, com poeira e vento a uivar por todo o lado (ou, souberam depois, tentava encontrar madeira para construir um dos seus instrumentos, talvez para a orquestra sinfónica de Berlim).
A Patagónia, um dos territórios do mundo de que Luis Sepúlveda mais gostava e com o qual tinha uma ligação sentimental especial, talvez por aí viver gente em condições tão extremas, já tinha servido de pretexto para unir num só volume histórias escritas em diferentes lugares e situações, todas "amassadas" em cima de uma grossa tábua de madeira herdada de um velho padeiro de Hamburgo (onde o escritor, que não tinha secretária nem queria ter, viveu exilado, durante 14 anos). No Patagónia Express, de 1995, uma homenagem a um caminho de ferro que já não existe, contam-se histórias como a de um avô que enchia o neto de gasosas e refrescos só para que este urinasse à porta das igrejas de Santiago, que não é mais do que a própria história do escritor e do seu avô andaluz e anarquista, que acabava muitas vezes com cenas de pancada entre o avô e os padres.
Luis Sepúlveda, que para além de romancista foi realizador, jornalista e ativista político, ingressou aos 15 anos na Juventude Comunista do Chile e foi membro da Unidade Popular chilena nos anos 70, tendo tido de abandonar o país após o golpe militar de Augusto Pinochet em 1973, quando tinha 23 anos. Viajou e trabalhou no Brasil, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Peru, viveu no Equador entre os índios shuar. Em 1982, rumou para o exílio em Hamburgo, onde aderiu ao movimento ecologista e colaborou com a Greenpeace, tendo viajado pelos mares do mundo entre 1983 e 1988. Em 1997, mudou-se para Gijón, em Espanha, na companhia da mulher, a poetisa Carmen Yáñez. Regressava ao Chile todos os anos, durante dois ou três meses. Em Portugal, era presença frequente na Feira do Livro de Lisboa (onde o esperavam longas filas para as sessões de autógrafos) e no festival literário Correntes d' Escritas, na Póvoa de Varzim, desde a primeira edição.
Mundo do Fim do Mundo (e a Patagónia mais uma vez presente), A Lâmpada de Aladino (treze contos ficcionados, uma espécie de romances em miniatura, que passam por Santiago, Ipanema, no Rio de Janeiro, ou Hamburgo, num mês de Janeiro com neve), O Poder dos Sonhos (histórias e reflexões que relembram os tempos da tortura, a que foi sujeito, nunca tendo falado, ou os "mil dias mais plenos, belos e intensos da história do Chile", vividos ao lado de Salvador Allende), História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar (fábula que tem a foz do rio Elba e o porto de Hamburgo como cenário) ou As Rosas de Atacama (Historias Marginales, no original, que são histórias muito curtas sobre "personagens excepcionais") são outros títulos do escritor. O Fim da História, de 2017, protagonizado por Juan Belmonte, antigo revolucionário chileno e personagem também de Nome de Toureiro, é o seu último livro publicado. Nele se fica a saber que um cozinheiro de Estaline, o chileno Miguel Ortuzar, aprendeu a profissão em Lisboa, no Hotel Vitória, hoje sede do PCP.
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