#2 Quarenta dias pelos EUA: São Francisco, The City

"Perguntem a qualquer pessoa algo sobre São Francisco, e o mais certo é que acabe por contar-vos qualquer coisa a seu respeito, com um olhar quente e introspectivo... de recordação."

John Steinbeck, A América e os Americanos e Outros Textos


É fácil amar São Francisco, considerada por alguns como a cidade mais bela (e também mais diferente) dos Estados Unidos ou como uma das mais belas do mundo. Nem o mau clima, com temperaturas baixas mesmo no Verão e vento e nevoeiro frequentes, faz com que a também conhecida como Fog City, City by the Bay, Everybody's Favorite City ou simplesmente The City (para o escritor norte-americano John Steinbeck e para os californianos em geral) perca o seu charme. E que talvez lhe seja dado pela  presença do mar (gelado), pelas casas de estilo vitoriano (as seis painted ladies são as mais conhecidas), pelas colinas e pelas ruas tão íngremes (algumas podem ser "escaladas" de cable car), pelas vistas que se abarcam de Twin Peaks ou do cimo da Golden Gate Bridge, pelos parques com os relvados cheios de mantas e de gente ou pela ilha de Alcatraz ao largo.

Foi por Alcatraz que começámos, bilhetes comprados com alguma antecedência e seguindo viagem na companhia de um bom número de turistas, ou não seja esta uma das atracções da cidade. Depois de ter sido uma fortaleza militar construída para proteger a baía de São Francisco e antes de ter sido tomada, em 1969, por umas centenas de ameríndios (ainda se pode ler, logo à chegada, um "Indians Welcome" ou um "Indian Land" pintados numa fachada), ali funcionou, entre 1934 e 1963, a prisão de alta segurança de Alcatraz, onde reinava o lema "Break the rules and you go to the prision. Break the prison's rules and  you go to Alcatraz" e que acolheu logo nos primeiros tempos o famoso Al Capone. Também acolheu, a partir de 1957, William G. Baker, na altura com 23 anos e com três fugas de outras prisões no currículo. Na altura da nossa visita, que já valeria a pena sem este bónus, Bill Baker autografava o livro Alcatraz #1259, onde conta a sua história, que passa por ter aprendido, nos três anos em Alcatraz, a produzir cheques contrafeitos, "negócio" que o fez voltar a ser preso várias vezes ao longo das décadas seguintes. Aos 90 anos, vestindo um blusão de penas amarelo e um chapéu castanho à cowboy e sentindo-se um "fóssil" ou uma "relíquia", como confessa logo nas primeiras páginas do livro, acredita ser um dos últimos ou o último prisioneiro vivo de Alcatraz.

Em Alcatraz, percorremos as celas, ainda com alguns objectos, a "Times Square", com o seu relógio a dar as horas certas, a sala de refeições, onde o jantar era servido às 16h25, o bloco D, de isolamento, também conhecido como the treatment unit, o pátio, murado e à beira mar. Ouvimos histórias de quem lá esteve no audio tour disponível e vimos algumas das mais de 300 fotografias tiradas por Leigh Wiener no dia 21 de Março de 1963, entretanto publicadas no livro Alcatraz: The Last Day. E voltámos a terra e ao Pier 33 num dos barcos da  Alcatraz Cruises, tendo o Ferry Building como destino. Era dali que saíam os barcos de passageiros quando são Francisco ainda não tinha a Bay Bridge e a muito famosa Golden Gate (A Porta do Ouro), esta inaugurada em 1937 e assim chamada por causa da corrida ao ouro que marcou a História da cidade. Após remodelação, o Ferry Building é quase há duas décadas um espaço com lojas, gelatarias e restaurantes e com um Farmer´s Market mesmo ali em frente às terças, quintas e sábados – e quase a terminar quando lá chegámos. Há mercados de agricultores por toda a Califórnia e em São Francisco havíamos ainda de passar pelo do Civic Center, que se realiza aos domingos e às quartas e é assim uma espécie de extensão da Chinatown. 

São Francisco tem cerca de 34 por cento de asiáticos entre a sua população, cerca de 15 por cento de latinos, mais ou menos 5 por cento de africanos ou afro-americanos e muitos emigrantes ou descendentes de muitas nacionalidades. E isso nota-se no perfil dos bairros, se bem que as "fronteiras" não são estanques. Logo no início da viagem instalamo-nos por quatro noites em North Beach, a pequena Itália, e partimos à  descoberta da cidade, sobretudo a pé mas também com a ajuda de um eléctrico de 1893 que sobreviveu ao incêndio que se seguiu ao terramoto de Abril de 1906, dos streetcars (vale a pena apanhar os vintage da linha F, que percorrem a Market Street, de Fisherman's Wharf a Castro) e de um ou outro autocarro, no caso para ir até perto da Golden Gate. Só não chegámos a experimentar os táxis sem condutor que na altura circulavam pela cidade ainda de forma experimental e limitada. A 10 de Agosto último, numa decisão pouco consensual, foi autorizada a entrada em funcionamento sem restrições dos veículos sem mão humana das empresas Waymo e Cruise, subsidiárias da Google e da General Motors.

No primeiro dia inteiro por São Francisco houve tempo, depois da manhã em Alcatraz e do almoço no Ferry Building, para percorrer o Finantial District, quase deserto por ser sábado e com edifícios como a Transamerica Pyramid, de 48 andares, ou a Salesforce Tower, de 61, a marcar a paisagem. E ainda Downtown e a Union Square, considerada o centro da cidade, com a sua esplanada rodeada de grandes lojas e de hotéis de luxo e na qual um homem se passeia com um cartaz onde assegura que só Jesus nos pode salvar (havíamos de o voltar a encontrar), e Chinatown, com os seus templos, pagodes, balões, lojinhas e  restaurantes ao longo da Grant Avenue ou da Stockton Street. Washington Square Park havia de ser a última paragem, para um concerto na Sts. Peter & Paul Church com os alunos do Conservatório de Música de São Francisco a interpretar O Messias, de Handel. O concerto era de entrada livre mas tinha um donativo sugerido de 20 dólares.

Para a manhã de domingo, aceitámos a sugestão do velhinho Le Guide du Routard, de 2012, sobre a Califórnia, usado para programar a viagem: uma ida à Glide Memorial Church, igreja metodista que fica em Tenderloin, o bairro mais pobre e com maior número de sem abrigo, e onde as celebrações continuam a ser às 9h e às 11h. Enquanto esperávamos, passeámos pelo Boeddeker Park, uma espécie de ginásio ao ar livre para os mais velhos da comunidade chinesa – alguns caminhavam aos saltinhos ou faziam alongamentos, outros, em grupo, seguiam uma aula de ginástica por um tablet, junto ao grande mural Everyone Deserves a Home. E ali por perto muita gente instalada em tendas ou nos passeios, muitas colunas de som à vista, alguns pequenos painéis solares, alguém ainda a dormir num colchão no meio da estrada.

A Glide Memorial Church, que presta ajuda a quem não tem casa, fornecendo três refeições diárias gratuitas (o jantar, a partir das 16h, é ainda mais cedo do que era em Alcatraz), anuncia a quem chega que ali se canta, se dança, se ri, se celebra a vida ("We sing, we dance, we laugh together, we celebrate life"). Na cerimónia a que assistimos, transmitida também no Youtube, houve logo à partida distribuição de lenços de papel, houve música, gospel, poesia (tinha sido o seu dia internacional), discursos, um encontro de irmãos gémeos que não se viam há 41 anos, saudações de boas vindas a quem ali estava pela primeira vez, cumprimentos a quem estava mais próximo e a oferta de um bloquinho que talvez fosse para escrever as orações mas que eu havia de usar para colocar os carimbos dos parques que havíamos de visitar. E no final, pediram-se donativos, que podiam ser pagos em dinheiro ou por multibanco ("Make a gift. Give generously").

Estando em São Francisco é preciso ir a Castro, a Mission, a Haight-Ashbury. E foi o que fizemos. Em Castro, o bairro gay e onde Harvey Milk, o primeiro homossexual assumido a ter um cargo político nos Estados Unidos, morou e teve um estúdio fotográfico, há casas vitorianas, há bandeiras e passadeiras para peões pintadas com as cores do arco íris, há homens nus no espaço público, apesar da lei aprovada em 2012, e há um teatro, o Castro Theater, de 1922, com actuações frequentes do San Francisco Gay Men's Chorus. Em Mission, o bairro latino e o primeiro de São Francisco (em 1776 os franciscanos espanhóis fundaram ali a missão Dolores) vale a pena partir à descoberta das pinturas murais (no 3543 da 18 Street há o Women's Building, na esquina da 23 com a Capp Street um mural composto de retratos de figuras como Frida Kalho ou Gandhi, em Balmy Alley existe a maior concentração) e no fim descansar no parque Dolores, com vista para Downtown. Em Haight-Ashbury, onde nasceu o movimento hippie em São Francisco e onde em 1967 se realizou o festival Summer of Love, há casas que sobreviveram ao incêndio de 1906 (na Page ou na Waller Street), há as pernas fotogénicas da Piedmont Boutique (capa do nosso Routard) e nas proximidades uma colina a que vale a pena subir, o Buena Vista Park.

Havíamos de regressar à The City um mês e tal depois, viagem quase a terminar, mais de 7500 quilómetros andados, para percorrer o troço mais tortuoso da Lombard Street no nosso carro alugado, para subir ao cume de Twin Peaks e ficar por ali a ver as vistas, para comprar uns caranguejos do Alasca já cozinhados e embrulhados em jornal no Alioto Lazio Fish Market, perto do parque dos navios históricos, e fazer com eles um piquenique no Golden Gate Park, maior do que o Central Park de Nova Iorque e onde fica o Japanese Tea Garden, o Jardim Botânico de São Francisco ou o The Young Museum (vale a pena subir ao terraço). Ou para visitar o Museu de Arte Asiática.

E regressámos a São Francisco vindos de Napa Valley, a região dos vinhos californianos, via Sausalito, uma cidadezinha com charme do lado de lá da Golden Gate Bridge, ponte que se pode percorrer a pé (já o havíamos feito até ao primeiro pilar), de bicicleta ou de carro. Por Sausalito deliciámo-nos com as casas barco construídas no local dos antigos estaleiros navais, desmantelados após a II Guerra Mundial. E lamentámos ter perdido, por um triz, a Holy Ghost Festa, que o mesmo é dizer a Festa do Espírito Santo, uma iniciativa organizada todos os anos pelo Sausalito Portuguese Cultural Center. Do programa da festa, uma tradição que os emigrantes dos Açores levaram primeiro para a Califórnia e depois para Sausalito, a partir de 1886, fez parte uma procissão, com passagem pela  Praça Cascais (a vila portuguesa é “cidade irmã” da cidade norte americana), a coroação de duas rainhas, música e um almoço gratuito de sopas de carnes. 











































O centenário San Remo Hotel, de 1906, o ano em que um terramoto seguido de um incêndio destruiu grande parte da cidade, foi a escolha para os primeiras quatro noites desta viagem de 40 dias pelos EUA (mais sobre a história do hotel aqui). Localizado no 2237 da Mason Street, no bairro italiano de North Beach, muito próximo de Fisherman's Wharf, o San Remo, com quartos pequenos e casa de banho partilhada, teve um custo de 125 euros por noite para dois. O hostel Samesun San Francisco, no 1475 da Lombard Street (a uns 10 minutos a pé da parte mais conhecida e sinuosa da Lombard) e com uma clientela sobretudo jovem, foi a escolha para os três últimos dias da viagem. Custou 155 euros por noite para um quarto duplo, estacionamento para o carro alugado incluído. Tem também quartos partilhados.

Boudin Bakery, uma padaria no Fisherman's Wharf que funciona desde 1849, e o Pat's Café, no rés do chão de uma casa vitoriana da Taylor Street, em North Beach, perto da estação do cable car Powell  Mason, são bons sítios para tomar o pequeno almoço ou para fazer uma refeição. 

O MUNI, o sistema de transportes que cobre a cidade, tem passes para um dia por 13 dólares, para três dias por 31 e para sete por 41. Inclui as linhas de cable cars (Powell – Mason, Powell – Hyde e California Street), os streetcars (vale a pena apanhar os eléctricos históricos da linha F, que percorrem a Market Street, de Fisherman's Wharf a Castro), os autocarros e o Muni Metro (seis linhas). O sistema é gratuito para menores de 18, para maiores de 65, para pessoas com alguma incapacidade e pessoas em situação de sem abrigo. Informações sobre tarifas aqui e sobre horários e percursos dos cable cars aqui (funcionam das 7h às 22h e têm um custo de 8 dólares para um bilhete avulso).

Os bilhetes para a ilha e a antiga prisão de Alcatraz, disponíveis para vários horários a partir das 08h40, podem ser comprados aqui (e devem ser comprados com antecedência, por vezes de meses, se esta for uma visita que se queira mesmo fazer). Custam 45,25 dólares por adulto, com a partida de barco a ter lugar do Pier 33.

O Pier 24 Photogtaphy, localizado junto à Bay Bridge e que acolhe a exposição permanente da Fundação Pilara, é um local obrigatório para quem gosta de fotografia. É gratuito mas requer marcação prévia e nos seguintes horários, de segunda a sexta: 10h00, 13h00 e 15h15. Reservas e mais informações, incluindo sobre as exposições passadas e a história do edifício, aqui.

O San Francisco Maritime National Historical Park, localizado no Hyde Street Pier, em Fisherman's Wharf, e onde podem ser vistos navios históricos restaurados como o C.A. Tahayer, que transportou madeira para construção ou salmão em barricas, e ainda o Balclutha, o Hercules ou o Eureka, é outro dos lugares de São Francisco que vale a pena visitar. Os bilhetes para o parque custam 15 dólares mas a entrada está incluída no America The Beautiful Pass, que permite a entrada de um carro e de até quatro pessoas durante um ano em todos os parques nacionais dos EUA (por 80 dólares). Foi esta a nossa opção e foi aqui que comprámos o passe.

As celebrações na Glide Memorial Church, que fica no 330 da Ellis Street, no bairro de Terderloin, realizam-se todos domingos às 09h00 e às 11h00  e também estão disponíveis online. Mais informações sobre a instituição no site.

Mais sobre a viagem aqui (40 dias pelos EUA), aqui (de São Francisco a Los Angeles, pela Costa do Pacífico), aqui (Los Angeles) e aqui (São Diego). Seguir no Facebook ou no Instagram para acompanhar publicações futuras.

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