#1 Quarenta dias pelos EUA: de São Francisco a São Francisco, 7820 quilómetros depois

"Quero uma vida inteira a escrever sobre o que vi com os meus próprios olhos, contando tudo com as minhas próprias palavras, de acordo com o estilo que escolher, tenha vinte e um, trinta, quarenta anos, ou qualquer idade ainda mais avançada, e juntando tudo, como um registo de história contemporânea, para que no futuro seja possível ver o que realmente aconteceu e o que as pessoas realmente pensavam."

Jack Kerouac, escritor norte-americano, autor de On the Road (1922  1969)


Foi a maior viagem de sempre, se o critério for a distância feita de carro, batendo o recorde detido até este ano pela Namíbia. Em quarenta dias, nos meses de Abril e Maio, percorremos parte dos estados da Califórnia, Arizona, Utah e Nevada, atravessando desertos e montanhas, cidades e parques naturais, pedaços da mítica 66 e do El Camino Real, nome dado à rota histórica das missões espanholas, num total de 7820 quilómetros. Ou 4859 milhas, que é como nos Estados Unidos se medem as grandes distâncias. Percorremos também à volta de 300 quilómetros a pé, numa viagem que foi dos 39 graus fahrenheit de sensação térmica (ou 4 celsius) sentidos no Riverside Ranch, perto do Bryce Canyon National Park, aos 110 fahrenheit (44 celsius) no Death Valley National Park, reconhecido oficialmente como o lugar mais quente da Terra. Em  Badwater, no Death Valley, que é o ponto mais baixo dos EUA, descemos aos 282 pés (86 metros) abaixo do nível do mar, em Rainbow Point, no Bryce Canyon, nessa altura ainda com neve, subimos aos 9115 pés (2778 metros).

Pela estrada fora, vimos táxis autónomos, sem condutor, pelas ruas de São Francisco; camiões da Amazon e da Walmart por todo o lado; casas de madeira onde apetece morar e pessoas sem casa, algumas abrigadas em tendas; campos de RV – Recreational Vehicles a fazer lembrar o filme Nomdland – Sobreviver na América, sendo que em Desert Springs, a caminho de Las Vegas, um lugar para estacionar uma caravana durante um mês custa 540 dólares; vimos casas barco à venda à beira da Highway 24, só montanhas e aridez à volta; casinos construídos e explorados por índios, negócio previsto na Lei de Regulação do Jogo Indígena. Vimos cartazes do programa Adopt a Highway, tantos que quase adoptei uma estrada. Vimos pomares imensos, bancas de fruta, com as primeiras cerejas da temporada a serem compradas a umas crianças mórmons, a caminho do Kings Canyon, e bombas de gasolina que anunciam oferta de fruta em troca da compra de combustível. Vimos anúncios de advogados especialistas em todas as matérias ("Better Call Burk"), outro escrito em espanhol que propõe o aluguer de um espaço para as festas de quinceañeras, bodas e outras ocasiões especiais  ("Salón se renta"). Vimos em Las Vegas cartazes em que alguém confessa confiar em Jesus ("Trust en Jesus") ou lhe pede perdão pelos pecados ("Forgive my sins Jesus. Save my soul").

São Francisco, conhecida como Fog City, Everybody's Favorite City ou simplesmente The City para o escritor norte-americano John Steinbeck e californianos em geral, foi o ponto de partida e também a etapa final de uma volta que nos havia de levar, via estrada 101, pela Costa do Pacífico, com paragens nas cidades grandes de Los Angeles e São Diego, nem a 30 quilómetros de Tijuana, no México. Mas também em cidades pequenas, como Santa Cruz, estação balnear e de surfistas, Monterey, que já foi terra de pescadores, de fábricas de conserva de peixe e de bordéis e que tem agora um belo aquário, Carmel by the Sea, que teve Clint Eastwood como mayor. Ou ainda San Luis Obispo, que em 1990 terá sido a primeira cidade do Mundo a proibir o uso do tabaco em restaurantes e bares e que hoje tem cartazes que anunciam as Tobacco Free Zone, Solvang, construída a partir de 1911 por emigrantes dinamarqueses ao estilo do seu país, e Santa Barbara, cidade balnear e universitária que tem um restaurante no final do Stearns Wharf, o Shelfish Company, com bons tacos de camarão, ceviche, misto de peixe frito ou mexilhões.

Deixando a costa do Pacífico e rumando ao interior, demos início a uma espécie de maratona de maravilhas geológicas, que passou por dez parques naturais e também por dois monumentos nacionais, o Canyon The Chelly e o Grand Staircase Escalante, e um parque tribalo Monument Valley, habitat dos índios navajo. No Joshua Tree National Park, uma reserva natural nos desertos de Mojave e Colorado e onde crescem árvores da família das yucca, aceitámos o apelo do National Weather colocado no início de cada trilho ("Do Not Die Today") e não morremos nesse dia. Pelo que havia a viagem de prosseguir pelo south rim do  Grand Canyon, o desfiladeiro de 447 quilómetros escavado pela erosão e pelo rio Colorado, pela Petrified Forest, que tem árvores fossilizadas com mais de 200 milhões de anos, pelo Bryce Canyon, com a maior concentração de hoodoos, que são colunas irregulares de pedra, do planeta Terra, pelo Capitol Reef, onde o Waterpocket Fold, uma formação geológica, se estende por cerca de 160 quilómetros e onde há pomares e tartes de fruta herdados dos pioneiros que ali se instalaram, o Arches, com mais de 2000 arcos de pedra naturais. E ainda pelo Zion, com penhascos de arenito laranja, pelo Death Valley, que não só é o lugar mais quente da Terra mas o mais seco dos Estados Unidos, pelo Kings Canyon e as suas sequóias gigantes, e por Yosemite, cheio de cascatas. Entre o Zion e o Death Valley, fizemos uma pausa na incursão por tanta natureza para três dias em Las Vegas, que é assim uma espécie de alucinação no deserto.

As 41 noites da viagem foram passadas em 31 alojamentos. Dormimos em hotéis de beira de estrada, daqueles que têm sempre uma máquina de gelo por perto e geralmente máquinas de lavar e secar roupa que funcionam a moedas (como o Arizona Inn, em Kingman, à beira da 66, ou o Super 8, em Flagstaff). Em hotéis centenários, caso do San Remo Hotel em São Francisco, de 1906 e localizado no bairro italiano de North Beach, ou do Wawona Hotel, construído em 1879 em Yosemite, o primeiro alojamento do parque. Ou num hotel diferente de todos os outros, o Amargosa Opera House & Hotel, localizado na muito quente localidade de Death Valley Junction, onde a bailarina, coreografa e pintora nova iorquina Marta Becket (1924 – 2017) viveu e actuou durante décadas. Dormimos também num dos hotéis de Las Vegas com vista para a Strip, o Treasure Island Las Vegas Hotel & Casino, num antigo trading post dos índios navajo, no Canyon the Chelly, num lodge, o Yavapai, dentro do Grand Canyon, e em casas partilhadas com os seus residentes habituais. Em New Harmony, próximo do Zion, dormimos na casa de Paula e Rob e num quarto decorado com uma boa quantidade de ursos de peluche e com três aguarelas de Alfama à cabeceira, apesar de os donos nunca terem estado em Portugal. Em Windsor, em Napa Valley, a região onde são produzidos os vinhos da Califórnia, Shelly tinha acabado de fazer 60 anos e tinha na cozinha flores e dois balões a confirmar a idade.

Gastronomicamente, teve esta viagem um menu local mas também com sabor a mundo, ou não tenham os Estados Unidos a maior taxa de população imigrante entre todos os países. Comemos hambúrgueres, os suficientes para experimentarmos em Los Angeles os da cadeia In–N–Out, uma empresa familiar que nasceu nos anos 40 nos arredores da cidade, comemos em São Francisco o pão da Boudin Sourdough, padaria que mete a mão na massa desde 1849, comemos caranguejos do Alasca, vendidos para take away no Alioto Lazio Fish Market, perto do parque dos navios históricos, e o melhor salmão de sempre no Sweet T'sem Windsor, Napa Valley. Comemos tacos, quase tantos como se viajássemos pelo México (no City Tacos, em São Diego, há-os de camarão, vegan ou de cochinita pibil, que é carne de porco cozinhada lentamente) e provámos os dim sum do Imperial Palace, que já se chamou Golden Dragon e foi um dos primeiros restaurantes chineses a abrir na Chinatown de São Francisco. No Anderson's, em Buelton, a duas milhas de Solvang, a "capital dinamarquesa dos EUA", fizemos uma paragem para almoçar sopa de ervilhas, confecionada há 100 anos e apresentada em versão individual ou em all you can eat, num prato ou no pão. A acompanhar, pedaços de fiambre, de queijo, de pão torrado e de alho francês. Em Bakersfield, jantámos no Benji's comida do país basco francês, restaurante que pertence a Bernard "Benat" Benji Arduain, nascido em Ossès, França, e desde os anos 70 imigrante nos Estados Unidos. E por poucos dias não apanhámos na cidade o 49.º Bakersfield Basque Festival, que havia de acontecer nos finais de Maio.

Conhecer pessoas é também um dos ingrediente bons de viajar. E logo no segundo dia desta volta pelos Estados Unidos conhecemos em São Francisco, numa visita à prisão de Alcatraz, William G. Baker, que autografava o seu livro Alcatraz #1259 e que acredita ser o último prisioneiro vivo da antiga prisão onde deu entrada em 1957, aos 23 anos, depois de ter fugido de outras três. Ali, durante três anos, aprendeu a produzir cheques contrafeitos, "negócio" que o fez voltar a ser preso várias vezes ao longo das décadas seguintes. E quase no final da viagem, no Pioneer Yosemite History Center, em Wawona, encontrámos Burrel "Buckshot" Rambo Maier, perto de fazer 70 e que desde os 16 é condutor de diligências no parque nacional. É o último a fazê-lo e diz ter orgulho nisso. Pelo meio, fomos conhecendo americanos menos peculiares mas quase todos apaixonados por Portugal. Um tinha estado em Lisboa e na Nazaré, outro tinha dormido num convento a sul de Lisboa. Uma residente em Tampa, na Florida, e de visita ao Canyon de Chelly, baralhou-se e disse-nos ter uma amiga a viver em Portugal, "nas Canárias". Dean e Joanne, voluntários no Balboa Park, em São Diego, têm amigos a viver no Douro. Alguns devem andar por aí.


Twin Peaks, São Francisco, Califórnia

Golden Gate Bridge, São Francisco, Califórnia

Alcatraz, São Francisco, Califórnia

Santa Cruz, Califórnia

Monterey Bay Aquarium, Monterey, Califórnia

Monterey Bay Aquarium, Monterey, Califórnia

Carmel by the Sea, Califórnia

Carmel by the Sea, Califórnia

Point Lobos State Reserve, Califórnia

Solvang, Califórnia

Santa Barbara, Califórnia

Santa Barbara, Califórnia

Malibu, Los Angeles, Califórnia

Pacific Park, Los Angeles, Califórnia

Venice, Los Angeles, Califórnia

Walt Disney Concert Hall, Los Angeles, Califórnia

São Diego, Califórnia

São Diego, Califórnia

Embracing People by Seward Johnson, São Diego, Califórnia

Joshua Tree National Park, Califórnia

Kingman, Arizona

Kingman, Arizona

Grand Canyon National Park, Arizona

Grand Canyon National Park, Arizona

Petrified Forest National Park, Arizona

Petrified Forest National Park, Arizona

Petrified Forest National Park, Arizona

Canyon the Chelly, Arizona

Monument Valley Navajo Tribal Park, Arizona

Monument Valley Navajo Tribal Park, Arizona

Horseshoe Bend, Arizona

Bryce Canyon National Park, Utah

Bryce Canyon National Park, Utah

Capitol Reef National Park, Utah

Arches National Park, Utah

Arches National Park, Utah

Zion National Park, Utah

Zion National Park, Utah

Las Vegas, Nevada

Las Vegas, Nevada

Las Vegas, Nevada

Death Valley National Park, Califórnia

Death Valley National Park, Califórnia

Death Valley National Park, Califórnia

Kings Canyon National Park, Califórnia

Yosemite Nacional Park, Califórnia

Yosemite Nacional Park, Califórnia

Yosemite Nacional Park, Califórnia

Jamestown, Califórnia

Napa Valley, Califórnia

Calistoga, Napa Valley, Califórnia

Sausalito, Califórnia

Sausalito, Califórnia

Painted Ladies, São Francisco, Califórnia


A viagem, feita num voo directo da TAP de Lisboa para São Francisco, com ida em meados de Abril e regresso no último dia de Maio de 2023, teve um custo de 834 euros por pessoa (mais umas quantas milhas). O aluguer do carro na Sixt para 36 dias, um BMW 330E, custou o equivalente a 2200 euros (56,41 euros por dia). Os alojamentos, reservados no Booking ou no Expedia, oscilaram entre os 85 euros no Arizona Inn em Kingman, e no Amargosa Hotel, em Death Valley, e os 265 no Bumbleberry Inn Springdale, às portas do Zion. Dormir num dos hotéis da popular cadeia Super 8, em Flagstaff, não longe do Grand Canyon, custou 102 euros, dormir no Yavapai Lodge dentro do parque nacional ficou por 249. Uma noite no Yosemite View Lodge, à beira do rio Merced, a confirmar que não é barato dormir nos parques ou próximo destes, custou 250,88 euros.

Mais sobre a viagem aqui (São Francisco), aqui (de São Francisco a Los Angeles, pela Costa do Pacífico), aqui (Los Angeles) e aqui (São Diego). Seguir no Facebook ou no Instagram para acompanhar publicações futuras.

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