Serra da Lousã (quarto dia): de Santo António da Neve à "mais que perfeita" Gondramaz

Talvez devesse ter frequentado antes as aulas da Escola de Pastores do Alvão, onde em Maio último começou um curso com 20 alunos provenientes de áreas tão diversas como Medicina ou Engenharia Aeroespacial, interessados em aprender mais sobre pecuária e pastorícia (reportagem sobre o assunto no Público). Mas mesmo sem formação, comecei o dia na Comareira a tomar conta das cabras e das ovelhas da única habitante da aldeia, enquanto a senhora Maria do Céu, 78 anos, se deslocava a casa por alguns instantes. Nessa manhã, e já depois de me ter despedido da mais pequena das aldeias do xisto e a caminho de Santo António da Neve, dediquei-me ainda à apanha de pinhas, a pensar na lareira e no próximo Inverno, mas também em todos aqueles que nas aldeias serranas ganharam a vida na recolha de lenha ou na produção de carvão. Conta Paulo Monteiro no seu Terra Que Já Foi Terra, uma análise sociológica de nove aldeias da Serra da Lousã publicada em 1985, que esta última era uma actividade dos mais pobres, caso das mães solteiras, de mulheres viúvas ou abandonadas ou dos "expostos da roda de Coimbra".

Santo António da Neve era o primeiro destino do dia e já no regresso, feito de carro, encontramos duas caminhantes que nos perguntam, quase sem fôlego, se valia a pena continuar até lá. Vale, pela paisagem e pela História. No planalto de Santo António da Neve, antigo Cabeço do Pereiro, construiu-se em 1786, a mando de Julião Pereira de Castro, neveiro-mor da Casa Real, uma capela em honra de Santo António. Também por ali se construíram sete poços neveiros, feitos de xisto e barro, que serviam para guardar a neve no Inverno e para abastecer no Verão o Rei e a sua corte e também o Café Martinho da Arcada, que era então propriedade do neveiro-mor e se chamava Casa da Neve. Os blocos de neve, guardados em caixas de madeira e envoltos em palha para não derreterem, eram transportados por juntas de bois até Constância e seguiam Tejo abaixo, até Lisboa, onde eram entregues no Terreiro do Paço. Três dos sete poços ainda permanecem de pé.

Era também em Santo António da Neve que os povos serranos da Lousã, Vilarinho, Serpins, Coentral ou Castanheira de Pera se juntavam na festa anual de Julho, uma espécie de "grande assembleia" (assim lhe chama Paulo Monteiro) onde se resolviam algumas questões pendentes, por exemplo através do jogo do pau. E onde em tempos mais recentes se continuaram a reunir, no Encontro de Povos da Serra da Lousã, uma iniciativa dos jornais Trevim e Mirante, de Miranda do Corvo, da associação para o desenvolvimento económico e cultural Caperarte, de Castanheira de Pera, ou da Lousitânea  Liga de Amigos da Lousã, que aconteceu de 1997 até 2019, ano antes da pandemia.


 














Ao quarto dia na Serra da Lousã e já visitadas as principais aldeias do xisto, à excepção de Gondramaz, que ficaria para a tarde, sobrou tempo para uma caminhada matinal nos novos Passadiços da Ribeira das Quelhas, uma obra da Câmara de Castanheira de Pera financiada pelo Programa Valorizar – Linha de Apoio à Valorização Turística do Interior e que visa aumentar a oferta de lazer disponível no concelho. Aproveitámos então, que antes dos passadiços de madeira a ribeira, com as suas pequenas lagoas e cascatas, só era acessível através de um trilho difícil por entre fragas de xisto e de granito ou através da prática de canyoning. No site da Câmara Municipal está ainda disponível a informação relativa ao percurso pedestre mais antigo.

Os passadiços, localizados muito perto da aldeia do Coentral Grande e a cerca de três quilómetros de Santo António da Neve, têm 1200 metros sempre a subir, e no regresso 1200 sempre a descer, e seguem na margem direita da ribeira, que em finais de Maio levava pouca água. E os passadiços pouca gente: nós e mais dois caminhantes, com quem nos cruzámos só no final do percurso,











Se os nomes das aldeias do Talasnal ou do Chiqueiro me eram familiares há mais de três décadas (ver aqui), só soube da existência da aldeia de Gondramaz, localizada a 9 quilómetros de Miranda do Corvo, quando preparei esta viagem à Serra da Lousã. E visitá-la só não foi o final perfeito para o roteiro de quatro dias pois antes do regresso ainda houve outras coisas boas: um alojamento à beira Ceira, o Palheiro do Malgas, que é um projecto de novos aldeões que deixaram Lisboa para rumarem ao lugar da Ribeira Cimeira, na freguesia de Serpins, um passeio de lá a pé em estrada de terra batida, mais ou menos uns 500 metros, até à Garganta do Cabril do Ceira, um acidente geográfico que se transformou numa bela paisagem, e um surpreendente delivery da Casa Velha da vila da Lousã para o último jantar, um arroz de berbigão com filetes de bacalhau fresco.

Mas regressemos a Gondramaz, percorrida numa quinta-feira à tarde no início do mês de Maio, sem outros visitantes por companhia. A aldeia, rodeada por uma mancha verde de castanheiros, azevinhos e carvalhos, tem 84 casas, muitas delas de Alojamento Local, uma placa com o poema Bucólica de Miguel Torga à entrada (que em 1935 foi médico na região), um fontanário e um lavadouro, uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição mas que acolhe também uma imagem da padroeira da aldeia, a Nossa Senhora das Candeias, um Largo dos Petiscos, outro do Cão, um Beco do Tintol, um antigo Salão de Baile, uma oficina de escultura de Manuel Rosa (onde se pede para ter cuidado com a cabeça ao entrar, pois a porta pequena manteve o tamanho original) e um restaurante, o Pátio de Xisto, que nessa altura só funcionava ao fim de semana e por marcação (também tem alojamento). Mas o ex libris de Gondramaz são as esculturas em pedra que se vão descobrindo nas fachadas das casas não rebocadas ou nas ruas da aldeia, algumas com assinatura do escultor local Carlos Rodrigues, já falecido. No site das Aldeias do Xisto chamam-lhe "Aldeia mais que perfeita" e são capazes de ter razão.






























A Mountain Whispers, um projecto de turismo em espaço rural, oferece alojamento em sete casinhas na aldeia de Gondramaz: a Casa Mãe, onde é servido o pequeno almoço e onde há uma piscina comum, a Casa da Madeira, a Casa da Terra, a Casa da Paisagem, a Casa Nogueira e as casas Maria e Carlos, recuperadas a partir da antiga casa do escultor Carlos Rodrigues e da sua mulher. Reservas e mais informações no site ou através do 239532055. Há também na aldeia a Casinha do México, assim chamada não por ter alguma coisa a ver com o país da América Central mas sim com a alcunha do dono, México, que tinha uma pista de motocross. Tem dois pisos, um terraço e quatro quartos duplos. Informações aqui ou através do 916296103.

O Palheiro do Malgas, assim chamado também por causa da alcunha do dono original e avô do actual proprietário, é uma boa opção para conhecer a Garganta do Cabril do Ceira ou para partir à descoberta das aldeias serranas. Mais informações na página no Facebook ou através do 910033133.

O restaurante Casa Velha, na Lousã, onde em tempos funcionou a rádio local (Praça Francisco Sá Carneiro, lote 14), tem pratos de cabrito e chanfana, de arroz de pato e arroz de feijão com pataniscas de bacalhau, para além dos filetes de bacalhau fresco com arroz de berbigão que nos foram entregue, ainda quentes, na Ribeira Cimeira. Reservas ou encomendas pelo telefone 919458549 ou 239991555.

Mais sobre esta viagem à Serra da Lousã aqui (primeiro dia), aqui (segundo dia) e aqui (terceiro dia).


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