Serra da Lousã (primeiro dia): do Casal de São Simão de uma só rua à criativa Cerdeira

"Não digas isso!", pediu a mulher ao senhor Albertino quando ele me respondeu que por ali só vive ele, ela, as cabras e as galinhas. E ainda uns ingleses que ficaram retidos no seu país por causa da Covid, havia de acrescentar depois. Estávamos na rua principal, que é também praticamente a única, de Casal de São Simão, aldeia do concelho de Figueiró dos Vinhos e uma das 27 que integram a Rede das Aldeias do Xisto distribuídas pelo interior da região centro de Portugal. Doze delas ficam na Serra da Lousã e dez foram visitadas nesta viagem. Escaparam Pena e Ferraria de São João.

Tínhamos acabado de entrar no Casal, depois de percorridos os cerca de 174 quilómetros que separam a aldeia de Lisboa, quando ouvimos, vindo da varanda de uma das casas em pedra recuperadas, um “Vocês não têm frio?”. Era o senhor Albertino, nascido em Oliveira do Hospital e emigrante em França e na Alemanha durante 40 anos, que metia conversa. E que estava com vontade de falar sobre o tempo, que nesse dia havia de ir do quente a uma salamandra acesa à noite, a pandemia, o filho emigrado em França, onde tem uma empresa de produtos portugueses, a situação da Justiça, de Ricardo Salgado e de José Sócrates, que “foi estudar para Paris, mas já sabia tudo”, ou das maleitas do Serviço Nacional de Saúde.

E era na sua varanda que continuava a ver passar os que nesse dia, uma segunda feira de Maio, visitavam a aldeia, talvez uma dezena ou duas de pessoas, quando regressámos para almoçar um bacalhau com crosta de cogumelos no restaurante Varanda do Casal, que chegou também para o jantar já na Cerdeira e que só por si seria uma boa razão para a paragem no Casal de São Simão. Mas o Casal tem também uma praia fluvial, onde um antigo moinho de água está transformado agora em alojamento local, um percurso de cinco quilómetros, o Caminho do Xisto de Casal de São Simão, que passa pelas Fragas, pelas ribeiras de Alge e do Fato e pelas povoações de Além da Ribeira, uma Ermida dedicada a São Simão e também a São Judas Tadeu e uns passadiços inaugurados em Julho de 2020 e com boas vistas sobre as Fragas – Fragas que José Malhoa pintou no quadro O Baptismo de Cristo, que pode ser visto no altar mor da Igreja Matriz de Figueiró dos Vinhos, vila onde o pintor morreu em 1933.

Casal de São Simão, lugar de pecuária e de pesca, tinha em 1860 cinco famílias a viver  e contava nessa altura com vários lagares de azeite e moinhos de vento, informa o site das Aldeias do Xisto. Nos anos 50 a 70 a aldeia ficou deserta – como quase todas na Serra da Lousã  e só nos anos 90 voltou a ganhar vida, com a recuperação de casas por gente da cidade que ali passava férias e fins de semana. Parece ir no bom caminho.








































Foi um prazer avistar a Cerdeira, depois de percorrida parte da N236 que passa pelo Candal (a aldeia da Lousã que por ser à beira da estrada nunca chegou a ficar despovoada e onde havíamos de voltar com tempo) e feito o desvio que conduz à aldeia escolhida para passarmos duas noites. As casinhas em xisto encavalitadas na serra – a da janela, a da escada, a da árvore, a das vizinhas ou a do forno, que nos calhou em sorte – surpreendem quem estaciona junto à Capela de Nossa Senhora de Fátima. 
A partir daí, é atravessar a pé a ponte de madeira sobre a ribeira, passar pela fonte construída em 1939 pela Câmara da Lousã e partir à descoberta da rua principal e de alguns recantos, como a Casa das Artes, mesmo no fim da descida, o forno comunitário "sem fumo" para cozedura de cerâmica feito pelo artista japonês Sensei Masakazu Kusakabe, a galeria com obras de artistas que passaram pela aldeia ou uma alminha num nicho na fachada de uma das casas (onde se lê num ex voto "Milagre que fez o Senhor dos Aflitos à aldeia da Cerdeira que não a deixou morrer e que sempre protegeu os filhos da Cerdeira por este mundo fora"). Para final do dia, sabe bem um copo ou um chá na varanda do Café da Videira, onde só há wi-fi depois de 30 minutos de conversa, lê-se numa ardósia logo à entrada.
A Cerdeira, aldeia com mais de 300 anos e que por pouco escapou ao saque do exército de Napoleão durante as invasões francesas (conta-se que a população escondia o presunto num buraco que fez para o efeito), podia ter tido um fim trágico. Ou melhor, teve, mas a história não ficou por aí. Nos anos 70, depois de ter atingido um máximo de população em 1940, de 79 moradores, a Cerdeira perdeu os três últimos habitantes na sequência de um crime: Augusto Constantino matou, por causa de um bem escasso por ali  água –, uma vizinha com um golpe de sacho, o que lhe valeu uma pena de prisão e levou o terceiro cerdeirense, irmão da vítima, a abandonar a aldeia. O acontecimento inspirou mesmo o realizador João Mário Grilo, que em 1992 adaptou a história para argumento do filme O Fim do Mundo.
Mas o mundo não acabou na Cerdeira (Augusto Constantino havia de regressar em 1983, depois de cumprida a pena), sobretudo depois de Kerstin Thomas e Bernard Langer terem entrada na sua história. Kerstin Thomas, artista alemã, era estudante em Coimbra, de Língua e Cultura Portuguesa, quando conheceu a Cerdeira e tomou a decisão de se instalar ali. Desde 1988, o casal foi recuperando algumas das casas da aldeia e alguns anos mais tarde Natália e José Serra, amigos dos tempos de Coimbra, juntaram-se ao esforço de recuperação.
Daí nasceu o projecto Cerdeira Village, que há três anos se transformou em Cerdeira – Home for Creativity. A aldeia, que tem hoje menos de dez habitantes em permanência e dez casas mais um hostel abertos aos visitantes, é um lugar de criação artística, que recebe residências e retiros de artistas nacionais e estrangeiros e workshops vários (decorria um dedicado à escultura em cerâmica aquando da nossa passagem). E ainda um festival de artes e ofícios contemporâneos, o Elementos à Solta – Art Meets Nature, que regressa para uma 14ª edição no mês de Julho, de 23 a 25, depois de dois anos de interrupção (todo o programa aqui). Um bom pretexto para pôr os pés a caminho da Cerdeira.





















Mais informações sobre Casal de São Simão, Cerdeira e restantes aldeias no site da Rede das Aldeias do Xisto, um projecto da ADXTUR  Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto, em parceria com 21 municípios e operadores privados locais.

Mais informações sobre o percurso Caminho do Xisto de Casal de São Simão, a PR1 FVN, aqui.

O Moinho das Fragas, com capacidade para receber até quatro pessoas, é uma das opções de alojamento na zona. Há quem diga nos comentários do Booking que ficar ali é como estar "dentro da praia fluvial". Preços para dois à volta de 84 euros.

Toda a informação sobre o alojamento na Cerdeira, dez casas (uma acabada de abrir, a Casa do Mel) e um hostel com duas camaratas com capacidade para seis pessoas cada (com a Covid, a capacidade foi reduzida para três), está disponível no site Cerdeira Home for Creativity. Há casas para dois, para quatro, para cinco, para seis, todas decoradas com trabalhos de artistas convidados. Também estão disponíveis no site informações sobre os percursos pedestres e  as actividades (como a iniciação à roda de oleiro ou a construção de casinhas em xisto) que os hóspedes podem realizar na Escola de Artes e Ofícios.

Come-se bem na Serra da Lousã. O Varanda do Casal, que encerra habitualmente às segundas e terças e tem pratos como cabrito com castanhas, borrego dos casamentos ou caril de gambas, este para lembrar Angola, onde a família Antunes começou na restauração em 1967 (reservas pelo 967703994), O Burgo, aberto desde 1989 e que se havia de tornar uma espécie de cantina durante os dias na Lousã (encerra à segunda, reservas pelo 239991162), e o Ti Lena, assim chamado em homenagem à última habitante do Talasnal e que tem pratos de cabrito, chanfana ou bacalhau cozinhados por D. Lisete (só por encomenda, encerra à segunda e durante a semana ao jantar, reservas pelo 911932948) são alguns sítios a ter em conta.

Mais sobre esta viagem à Lousã aquiaqui (segundo dia) e aqui (terceiro dia).


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