#1 Diário de um regresso a Moçambique – "Do you live here?"

Foi com um "Voltaste? Andas sumido!" que um dos bagageiros do Aeroporto de Maputo, eram umas três e meia da manhã, recebeu o meu companheiro de viagem. Já a mim, nem uma hora depois, haviam de me confundir com alguém que não domina o português. "Do you live here?", perguntava-me o guarda do prédio onde havia de viver dias agridoces neste regresso a Maputo, uma estadia intercalada por duas escapadelas em busca das águas quentes do Índico, à praia do Bilene e à Ponta do Ouro, e por uma ida à África do Sul, para um inevitável safari no Kruger National Park.

Para alguns, talvez não seja esta a melhor altura para conhecer ou voltar a Moçambique, embora haja quem pense que por lá "a vida tá normal". "Os que estão fora estão mais assustados", ouvi em Lisboa na hora do embarque. E estão assustados pela situação de forte agitação social que se tem vivido depois das eleições presidenciais de 9 de Outubro, sobretudo depois do assassinato a tiro de dois membros da campanha de Venâncio Mondlane (Elvino Dias e Paulo Guambe) e do anúncio dos resultados eleitorais que deram a vitória à Frelimo, partido há 50 anos no poder. Ao longo dos últimos cinco meses nem todos os protestos foram tão pacíficos como cantar o hino nacional em grupo ou aderir à batida simultânea de panelas e frigideiras, o famoso "panelaço" que terá dado cabo das loiças das mamãs. Houve também barricadas, cortes de estradas, fecho temporário da fronteira de Ressano Garcia, saques e confrontos com a polícia. Morreram pelo menos 388 pessoas segundo dados da Decide, organização não-governamental que acompanha os processos eleitorais, e cerca de 800 foram baleadas. Foram destruídos pelos menos 1677 estabelecimentos comerciais, 177 escolas, 23 unidades sanitárias e ainda fábricas, armazéns comerciais, farmácias, postes de energia, ambulâncias, casas do Governo e casas particulares (dados do Governo).

Ainda em Portugal, disse-me uma amiga que iria tudo correr bem, que era só não sair da "bolha". E correu, embora não tenha seguido o conselho. Andei por toda a cidade de cimento, agora com mais segurança (há três blindados na Julius Nyerere, junto ao Palácio da Presidência), com mais lixo espalhado e junto aos contentores, com mais gente a sobreviver com o que aí apanha, com apelos nas paragens de autocarro para que não haja destruição ("Não destruir. Este abrigo é do povo"), com "chapas" e carros particulares com cartazes com as palavras de ordem Povo no Poder, Este País é Nosso! ou Anamalala, palavra que em macua significa acabou ou vai acabar. Ou com outro estacionado junto aos murais de Sebastião Coana, na Rua da Gávea, onde se lia "São maningue cenas para um papel A4".

Também ouvi relatos de quem foi saqueado, de quem teve de despedir trabalhadores (a CTA - Confederação das Associações Económicas de Moçambique estima em 17 mil os desempregados resultantes da actual situação), de quem não faz negócio por falta de clientes, pela ausência de turistas. E andei ainda pelos bairros e arredores: fui conhecer ao vivo a Chapateca, uma biblioteca itinerante que circula por Boane ou pela Katembe, fui conhecer a Casa de Vidro, feita com mais de 500 mil garrafas e que é um projecto de educação ambiental que Carlos Serra construiu na Macaneta, fui ver o nascer do dia e o regresso da pesca no Bairro dos Pescadores, fui a uma festa de graduação na Matola de quem um dia apostou com o irmão que iria continuar a estudar. E ganhou. [brevemente, estas e outras histórias por aqui]


Mural de Sebastião Coana na Rua da Gávea, Baixa de Maputo

Mais sobre o Diário de um Regresso a Moçambique nos links:

Uma pedicure no Bilene 

A banhos de mar e chuva na Ponta do Ouro

A rir e a comer pipocas no Teatro Gungu

Há novos heróis em Moçambique?

Há livros a bordo da Chapateca

Nascer e final do dia no Bairro dos Pescadores

Uma graduação na Machava

Ao encontro da arte urbana no bairro Unidade 7

Visita à Casa de Vidro na Macaneta

Eid Mubarak!


Comentários

Mensagens populares