#4 Moçambicanos - Saquina Abdurraimo, Ilha de Moçambique

Saquina Abdurraimo, cozinheira, bailarina de tufo e já personagem deste blogue, nasceu há 44 anos no Monapo, em casa dos avós maternos, com quem viveu nos primeiros tempos, mas sente-se da Ilha, para onde foi com dois anos ("Quase nasci cá. Já sou daqui."). Nunca viveu com o pai, que se separou da mãe quando ela ainda estava grávida. Mas viveu, mais tarde, com a mãe e o padrasto e desses tempos lembra-se de a mãe ter duas capulanas e de lavar uma delas todas as noites. Ou de o padrasto ter uma única balalaica, uma camisa tradicional, e de esta também ter de ser lavada para ser vestida no dia seguinte. Havia dias em que Saquina e os irmãos (ao todo, eram cinco raparigas e dois rapazes) comiam papinha de manhã, uma farinha de milho "sem açúcar nem nada", e só à noite voltavam a comer.

Na escola, onde andou até aos 16 anos, Saquina gostava de estudar mas gostava mais de brincar ou de lutar com os colegas que a provocassem ("Sempre me mandavam embora da escola."). Em casa, também só queria brincar e passear, não queria ir ao poço, não queria pilar. Gostava de ir à discoteca e às matinés dançantes, que aconteciam ao domingo na piscina da Ilha, onde também havia aulas de natação e que agora está desactivada. Aos 17 ficou grávida do único filho que teve, que tem agora 26 anos, e o namorado não aceitou a criança. Mas os avós paternos sim, tendo levado o neto para viver com eles quando tinha três dias. E por lá ficou até aos 15 anos. Sempre com Saquina por perto, primeiro a amamentar, depois a assegurar "o pão de cada dia", que nunca lhe faltou.

Diz que foi "pelo sofrimento" que começou a cozinhar. No início, acordava à quatro da manhã para fazer apas com ovos estrelados e com maionese e tomate sauce, que tinha visto uns somalianos fazer em Nampula e que vendia na rua, juntamente com refrescos. Fazia-as na casa de um português com quem vivia, alguém que bebia muito, que era ciumento e que não se conseguia controlar, chegando a deitar fora todas as suas coisas. Acabou por arranjar um espaço numa ruína em frente ao Escondidinho, agora Pensão das Amoreiras, e abrir o Take Away, onde começou a servir petiscos e que foi um sucesso desde o início. Na altura, só tinha um congelador, faltava-lhe o som ("Um sítio assim tinha que ter música"), faltavam-lhe produtos, faltava-lhe tinta nas paredes (e Saquina "subiu andaime" para as pintar). Pelo que decidiu vender algumas pulseiras de ouro que tinha para ter dinheiro para investir.

Ficou uns bons anos no seu Take Away, já não se lembra quantos, até que as quatro mesas que apenas conseguia ter a fizeram sonhar com um sítio maior. Saquina costumava apanhar marisco e também ir namorar para a zona do seu restaurante atual, que fica lá no final da contra costa, antes da Fortaleza de São Sebastião, mesmo sobre a praia. E em Setembro de 2010, na altura do aniversário da Ilha, quando eram atribuídos os locais para as barracas temporárias de comida se instalarem dentro do campo da bola, Saquina pediu que a deixassem ficar onde agora está. E não só a deixaram ficar durante a festa, como os presidentes do Município de Nampula e do Município da Ilha lhe deram a documentação para ali se instalar ("Deram-me esse presente"). Como contrapartida, Saquina assegurava que a praia, que antes era usada por quem não tinha casa de banho em casa (e esse é ainda um problema em algumas zonas da Ilha), permanecesse limpa.

De 2010 até agora, a barraca da Saquina caiu três vezes, por causa de ventanias e ciclones. A última foi em Março do ano passado, quando foi destruída pelo Gombe, o que a levou a cozinhar durante uns tempos nas instalações da piscina onde antes ia às matinés. Mas sempre se reergueu, mesmo depois dos tempos duros do Corona, com a ajuda dos clientes. Continua de pé e com uma barraca nova, mais forte do que as anteriores. E por ali continua a cozinhar caril de lulas, de polvo ou de caranguejo, arroz de coco, lulas panadas com farinha de mandioca (e temperadas com limão, alho e um pouco de picante), galinha fumada com capim, peixe à cabaçariana (inspirada numa receita da Cabaceira), matapa de siri siri, a que chama matapinha, ou doce de banana frita. 

Saquina, que chegou a ter também um restaurante em Nampula, antes de desistir por causa da bandidagem (conta que lhe catanaram o guarda e que bateram numa das empregadas, para roubar), já participou no Festival do Caranguejo em Nacala Velha e nos festivais Tzoziva na Ilha e já foi chamada para dar formação em Maputo. Mas o que ela gostava ("É um sonho") era conseguir dar aulas na Internet, fazendo chegar as suas receitas a mais gente, e recuperar algumas comidas antigas, já perdidas, como a mandioca seca com peixe frito, o arroz de mapira, que também é conhecida por sorgo ou milho miúdo, ou lulas e polvo secos com coco. E sobretudo gostava de participar num "festival grande", na Europa. Aí, apresentar-se-ia de capulana e lenço, para mostrar a maneira de vestir na Ilha, e pintaria a cara com mussiro. Como faz quando dança tufo. Por agora, o seu grupo, Nicumane, que significa Nos Encontramos e que exigia ensaios quase diários, está meio parado. "Precisa ter amor para manter", acha Saquina, a quem o trabalho não tem deixado tempo livre.  

[reservas para o restaurante da Saquina, que tem WhatsApp, podem ser feitas para o +258 873697971]

Retrato feito a partir de uma conversa realizada na Ilha de Moçambique a 8 de Fevereiro de 2023. É o quarto de uma série sobre moçambicanos a ser publicada aqui no blogue.