De Menina Europa a Menina África
Moçambique, África, 2013 – 2019
Seis anos e dois meses, 20 voos entre Lisboa e Maputo e outros tantos entre Maputo e Lisboa, cerca de 440 horas no ar, qualquer coisa como 340 360 quilómetros percorridos, o que é mais do que oito voltas completas à Terra. Três viagens enormes estrada fora, em 4x4, feitas a partir da casa de Maputo (a mais extensa contabilizou-se em 7 293 quilómetros, feitos em 18 dias) rumo ao Botswana, a um cantinho da Zâmbia e do Zimbabué, à Namíbia, à África do Sul e ao desconhecido Lesoto. Um acidente com capotamento no deserto mais antigo do mundo, o do Namibe. Quatro viagens à vizinha Suazilândia, que entretanto se passou a chamar Reino de Eswatini e onde decorre anualmente uma das maiores cerimónias culturais do continente, o Umhlanga ou Reed Dance. Uma viagem pela Maurícia e outra por Zanzibar – e a funcionária que nos carimbou os passaportes à saída de Maputo a dizer-nos que estávamos a viajar muito.
Em Moçambique, viagens pelas oito das 11 províncias – faltou Manica, Tete e a barragem de Cahora Bassa e a Zambézia e as suas plantações de chá. Uma dúzia de ilhas com direito a um pin no mapa: a tão especial Ilha de Moçambique (e as ilhas de Goa e dos Sete Paus nas proximidades), Santa Carolina, Bazaruto, Benguerra e Magaruque no arquipélago de Bazaruto, Ibo e Medjumbe nas Quirimbas e Inhaca e Xefina perto da capital. Um lago de 560 quilómetros de comprimento, que mais parece um oceano, o Niassa, também conhecido como lago Malawi. Praias capazes de entrar no top das melhores de qualquer ranking mundial. Um parque, o da Gorongosa, que é provavelmente o maior projecto de restauração da vida selvagem em África.
Esta aventura intermitente em África foi feita de muitos dias e noites de calor. E de um dia especialmente frio, o da missa campal do papa Francisco no Estádio do Zimpeto. De pores do sol quase sempre fotogénicos, os primeiros às cinco da tarde em ponto sobre o Índico em Agosto de 2013, e de alguns nasceres do dia com direito a post (aqui e aqui). De banhos de mar em águas mornas, quentes ou quase a escaldar. De descobertas gastronómicas, com petiscos como a matapa de siri siri ou o caril de caranguejo a deixar saudades. De emoções. De histórias tristes. De sorrisos. De palavras novas e de novas formas de usar as palavras velhas (aprendi que calamidade não é uma desgraça mas roupa em segunda mão vendida nos mercados, ou que estar incomodado é afinal estar doente). De gente guardada no lugar dos afectos: Agostinho, o afilhado da Beira que vai no bom caminho para se licenciar em Direito, Julinho, o miúdo da Ilha que diz sentir a falta de quem lhe chame cabeça de alho chocho (nome carinhoso que pode sempre seguir por WhatsApp), Nuhy, que quando for maior (e hoje já calça o 43 ou 44) não quer ser Presidente mas sim arquitecto, Alice, que me pediu por carta para ser sua "madrinha de coração", Etelvina e Faustino, os gémeos órfãos de quatro anos que me fizeram googlar o que é um joelho valgo e um joelho varo (e o ortopedista do Hospital Central que nos recebeu a ter boas notícias sobre o assunto), Edson, que me perguntou se não estará a sonhar demais quando pensa que gostava de um dia ser engenheiro mecânico. E Saquina, Hortência, Jaime, Langa, Raimundo, Rosílio, Elisa, Rita, Bruno, Inês, Inércia, Letícia, Dona Carlota, a vendedora talvez mais idosa do Mercado Central, que talvez não volte a ver...
Qualquer dia regresso, provavelmente no tempo das lichias (as melhores chegam à capital vindas do Chimoio) e das mangas maduras. Talvez regresse um pouco menos Menina Europa do que em Abril de 2014, quando assim me chamou um vendedor nas ruas de Maputo. Talvez um pouco mais Menina África. É pelo menos essa a opinião do amigo Sérgio Veiga, artista e homem do mato, que em 1977 vendeu alguns quadros no Rossio, em Lisboa, até ter 19 contos para pagar a viagem de retorno a um país que queria que fosse o seu (e de onde tinha sido trazido pelos pais com a promessa de que lhe pagariam a passagem de volta). "Mas tu pertences a África", responde-me quando lhe digo que ainda não tenho data para a próxima viagem.
Marginal de Maputo, Outubro 2019 |
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